Está aqui

As raízes da crise

A crise imobiliária está a caminho de se transformar em crise bancária e em crise simplesmente. Os bancos fabricaram caixinhas surpresa (a titularização) colocando lá créditos duvidosos e particularmente as dívidas das famílias americanas pobres (os subprimes), burladas por contratos enganadores. A sua falência provocou uma perda de confiança generalizada sobre o valor destes títulos, dos quais ninguém conhece verdadeiramente a composição. Tudo isto é evidentemente o resultado da avidez inextinguível de uma finança desenfreada.

Artigo de Michel Husson , a publicar na revista Regards (Fevereiro de 2008) e disponível no seu site hussonet.free.fr  

Mas o que é que permitiu, no fundo, este fenómeno da financiarização? Se procurarmos seguir o conselho de Marx de não ter apenas em conta a superfície das coisas, a resposta encontra-se na baixa universal do peso dos salários. Um pouco por todo o mundo, a parte das riquezas que os trabalhadores (que as produziram) recebem baixa desde há pelo menos 20 anos. É um facto estabelecido e reconhecido tanto pelo FMI como pela Comissão Europeia [1]. Qual a relação com a finança? É a seguinte: esta mais-valia que aumenta mais depressa que o rendimento nacional, não é mais investida como antes, e a contrapartida da baixa da parte salarial é portanto um crescimento rápido da mais-valia não acumulada. Que lhe acontece? É distribuída a uma pequena camada de proprietários e de pseudo-assalariados à procura de colocações que poderão fazer frutificá-la de novo. Daí uma enorme superabundância de liquidez e de capitais financeiros que reivindicam rendimentos cada vez mais extravagantes.

Ao fim de algum tempo, a finança autonomiza-se, dito de outra forma desenvolve-se segundo a sua própria "lógica". Esquece que o volume de valor disponível depende do grau de exploração e que este não pode, apesar dos esforços dos capitalistas, crescer de forma exponencial. As crises financeiras são, por conseguinte, manifestações periódicas da lei do valor. Depois das ilusões da "nova economia", são as ilusões dos novos produtos financeiros que acabam por desaparecer no fumo das perdas bancárias.

As recomendações pregando uma melhor governança, uma maior transparência, etc. não têm nada a ver com os delírios inventivos de uma finança deliberadamente fora de qualquer controlo. Quanto aos bancos centrais, eles não hesitam a travar a economia aumentando as taxas de juro cada vez que surge a ameaça de um aumento excessivo dos salários. Nenhuma piedade para os proletários! Mas quando surge um risco de crise financeira, não hesitam um instante a injectar massas enormes de liquidez para tirar de apuros os bancos com dificuldades. Dois pesos, duas medidas: os bancos centrais são instrumentos de gestão dos interesses dos proprietários.

A natureza de classe dos fenómenos em questão devia meter-se pelos olhos dentro: o dinheiro que os proprietários jogam neste casino, é o que foi extorquido, para além de qualquer medida, aos assalariados do mundo inteiro. Mas são também eles que vão sofrer as consequências: para apagar as perdas vai ser necessário sanear a economia à sua custa, travando o crescimento, aumentando as taxas de juro e usando as perturbações actuais da economia mundial como pretexto para baixar ainda mais os salários.

O capitalismo entrou assim numa zona de tempestades porque o frágil equilíbrio da economia mundial está hoje à beira da ruptura. Os Estados Unidos dificilmente podem fazer financiar um défice comercial abissal pelo resto do mundo ou pretender reduzi-lo graças à queda sem fim do dólar, sem que isto faça rebentar as crescentes tensões com a China e a Europa.

Estamos aqui confrontados com a deriva de um "capitalismo puro" liberto das suas cadeias, capaz de impor um crescimento ininterrupto da taxa de exploração. Mas é ao mesmo tempo o seu calcanhar de Aquiles. Para sair suavemente da situação actual será necessário de facto que as principais economias se reorientem para a procura salarial, o que suporia uma repartição dos rendimentos mais favorável aos assalariados. Mas os capitalistas dispõem, graças à mundialização, de uma relação de forças de tal forma favorável que não têm nenhuma razão para enveredar espontaneamente por esta via.

Tradução de Carlos Santos

 
Michel Husson economista francês e investigador no IRES (Instituto de Investigação Económica e Social)

[1] Ver "La hausse tendancielle du taux d'exploitation" ("A alta tendencial da taxa de exploração"), Inprecor, Janeiro de 2008

(...)

Neste dossier:

Dossier Crise Financeira Mundial

Depois da última "Segunda Feira negra", as bolsas continuam em queda um pouco por todo o mundo, em mais um episódio da crise financeira. Nos EUA, a recessão faz-se já sentir duramente. Só na cidade de Los Angeles, em cada hora que passa mais uma família fica sem casa.

Protesto em Nova Iorque exige congelamento dos despejos

Nos EUA, muitos milhares de pessoas estão a ser despejadas das suas casas, por falta de pagamento das prestações dos empréstimos, que cresceram brutalmente. Neste vídeo um protesto em Nova Iorque, onde intervém o reverendo Jesse Jackson.

EUA: A maior bancarrota dos negros na história

Martin Luther King, o lendário activista pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 60, revirar-se-ia no túmulo. O sistema financeiro esvaziou os bolsos das minorias raciais como ninguém havia feito na história moderna daquele país, segundo um estudo independente do não-governamental Unidos por uma Economia Justa (Ufe).

Os fundos emergentes que ganham com a crise e geram paranóia

A crise financeira dos Estados Unidos converteu-se numa grande oportunidade para os Fundos soberanos (Sovereign Wealth Funds), fundos estatais através dos quais os países petrolíferos e asiáticos começaram a comprar bancos com problemas. Nos últimos meses, China, Singapura, Arábia Saudita, Emiratos Árabes, Kuwait e Qatar utilizaram este instrumento financeiro para ficar com acções de entidades líderes como Merrill Lynch, Citigroup, Morgan Stanley, Bear Stearns y UBS.

China vê oportunidades na recessão dos EUA

Especialistas chineses continuam a inquietar-se diante dos cenários de pesadelo que uma iminente recessão económica nos Estados Unidos pode trazer à pujante economia chinesa. Mas alguns começam a achar que há males que vêm por bem.

Queda das bolsas internacionais: aconteceu o que tinha que acontecer

O dia 21 de Janeiro de 2008 converteu-se noutra Segunda feira negra das bolsas internacionais.
A queda é espectacular: o valor em bolsa das 35 maiores empresas espanholas caiu 101 mil milhões de euros em 14 dias, quase 20% da sua cotização. Nas bolsas asiáticas perdeu-se ontem entre 5 e 7% dos valores, no México 5%... e hoje virá Nova Iorque, enquanto seguramente continuarão a cair todas as outras.

Quando os EUA espirram o resto do mundo constipa-se

A assustadora queda livre dos últimos dias nos mercados accionistas dos EUA e globais não é surpresa para os leitores do meu blogue, porque vinha sendo analisada e prevista desde há já algum tempo. O colapso dos mercados de acções na segunda-feira 21 de Janeiro não é apenas um episódio de contágio do mercado accionista dos EUA relativamente aos outros mercados accionistas.

As raízes da crise

A crise imobiliária está a caminho de se transformar em crise bancária e em crise simplesmente. Os bancos fabricaram caixinhas surpresa (a titularização) colocando lá créditos duvidosos e particularmente as dívidas das famílias americanas pobres (os subprimes), burladas por contratos enganadores. A sua falência provocou uma perda de confiança generalizada sobre o valor destes títulos, dos quais ninguém conhece verdadeiramente a composição. Tudo isto é evidentemente o resultado da avidez inextinguível de uma finança desenfreada.

Como impedir o declínio, por Joseph Stiglitz

A economia americana encaminha-se para um importante arrefecimento. Se é uma recessão (dois quadrimestres de crescimento negativo) é menos importante do que o facto de a economia ir funcionar muito abaixo do seu potencial, e o desemprego ir crescer. O país precisa de estímulos, mas tudo o que fizermos vai aumentar o nosso altíssimo défice, por isso é importante o máximo de valor possível por cada medida. O pacote óptimo conteria uma medida de efeito rápido, junto com outras que poderiam levar a mais gastos se - e apenas se - a economia entrar num arrefecimento profundo.

Nem o Pai Natal salva os mercados financeiros, por Francisco Louçã

É muito raro, mas os principais comentadores dos mercados financeiros internacionais parecem estar de acordo quanto a um prognóstico para 2008: está a chegar uma recessão nos Estados Unidos. Pior ainda, esta recessão irá ter como efeito a conjugação de recessões simultâneas nos Estados Unidos como na Europa, como no Japão e nos mercados asiáticos.