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Para uma Academia do Pensamento Crítico

Mesmo se tudo parece conspirar contra nós, não podemos abdicar deste sonho: um outro mundo possível a partir de uma outra academia possível. Por Catarina Isabel Martins.

A propósito do tema que aqui nos reúne, recordo as palavras que sempre repetia um professor meu relativamente àquilo a que chamávamos “Crise das Humanidades” num panorama universitário. Afirmava ele que “as humanidades eram como a ópera. E que viver sem ópera era algo que um país não podia conceber”. Esta constatação parecia uma garantia de sobrevivência para um conjunto de disciplinas vistas como inúteis e descartáveis dentro de um paradigma de pensamento neoliberal, marcado por uma conceção utilitarista e imediatista do saber como produto mercantilizável, dentro de instituições governadas como empresas. As humanidades e as ciências sociais possuem, para além disso, aquela capacidade irritante, do ponto de vista do poder, de construírem um conhecimento que pode contrariar lógicas de dominação política e social, justamente porque aqui se situa o cerne do pensamento crítico na academia. Infelizmente, parece-me que, hoje, as certezas do meu professor se dissolveram no ar e que o facto de termos de acrescentar a expressão “do pensamento crítico” à palavra “Academia” constitui uma redundância que aponta para uma deriva em que a Universidade passou a ser a sua própria antítese, o que urge reverter. Sendo investigadora e professora de Humanidades, Literatura e Cultura e, para além disso, trabalhando na área de epistemologias críticas como as feministas e pós-coloniais, continuo a acreditar num ideal humanista de Universidade, num ideal de formação integral para a cidadania, numa Academia como lugar de transformação, onde se cria a justiça cognitiva com vista à justiça social, assumindo a plena e enorme responsabilidade associada ao facto de que conhecimento é poder, mas tem de sê-lo num sentido emancipatório.

Assim, refletir sobre uma academia do pensamento crítico implica interrogar de forma ampla e integrada os processos de construção e de partilha de conhecimento, bem como as formas de organização das academias que moldam, em diversos sentidos, estes processos e que criam – ou não criam, ou impedem que se crie – as condições indispensáveis para a formação de uma comunidade igualitária, livre e plural, de seres pensantes, a qual, por sua vez, entende o seu papel como crucial numa sociedade democrática. Trata-se de pensar a Universidade no seu todo. Tentarei isolar alguns temas de reflexão:

1. Investigação:

- Os processos de construção de conhecimento devem desenrolar-se em total liberdade e dissociados de lógicas de aplicabilidade, utilidade, quantificação e mercantilização, no sentido neoliberal, restrito, imediato e direto, como aquelas que presidem à irracionalidade burocrática e tecnocrática do Horizonte 2020 ou dos concursos FCT, que condena ao extermínio rápido as humanidades e as ciências sociais, produtoras do pensamento crítico, que não é vendável nem mensurável. Na conceção de projetos, e da sua avaliação e financiamento, deve ser reconhecida a ideia “fora da caixa” onde pode residir a genialidade; deve ser valorizada a interdisciplinaridade e o diálogo de saberes, em vez das lógicas estreitas de saberes confinados, e abrir espaço para os saberes minoritários, excluídos, contra-hegemónicos, emancipatórios; deve ser distinguido o pensamento transversal e amplo que se pensa como possibilidade de transformação social, a longo prazo.

- É imprescindível garantir condições de investigação e de libertação dos/as investigadores/as das pressões de captação de financiamento, da produtividade, dos “outputs”, da bibliometria, da publicação no centro imperial e no inglês imperial, do emprego precário e incerto, de curto-prazo, da apropriação do trabalho intelectual por superiores hierárquicos, instituições ou empresas, que configura uma transformação da academia em empresas que exploram mão-de-obra barata, descartável e sem direitos.

- O conhecimento deve ser encarado como um bem para todos/as, contra todas as formas de apropriação de direitos autorais, de patenteação para comercialização do saber e da tecnologia, numa lógica capitalista dominada pelas multinacionais globais. Deve ser intransigentemente defendido o acesso livre e democrático de todas as comunidades ao conhecimento que possa representar uma transformação essencial para o seu bem-estar e bem-viver, como a própria razão de ser do trabalho em ciência.

2. Formação:

 – A formação deve ser uma construção coletiva e partilhada, de forma livre e não hierárquica, pelos/as diversos intervenientes. As pedagogias e avaliação devem privilegiar a definição conjunta de questões a trabalhar, a transdisciplinaridade e a capacidade de reflexão, indagação, pesquisa e crítica. Dever-se-ia pensar, em todos os curricula, um lugar transversal para as humanidades e as ciências sociais ou para outras formas de introdução de epistemologias críticas, de um saber que se pensa a si mesmo.

- É imprescindível travar a comercialização da formação e a conversão de estudantes em clientes para uma formação “a pedido”, preferencialmente curta e de empregabilidade garantida, lógica introduzida com as reformas de Bolonha e que se tem aprofundado através da transferência para os/as estudantes dos cursos da própria formação, ao arrepio dos direitos constitucionalmente consagrados.

- Deve ser garantida a estabilidade de emprego para docentes, o cumprimento de direitos estatutários e de remuneração, as condições para o trabalho docente e para a realização paralela de investigação, a diminuição da carga burocrática da função docente, processos sérios de avaliação para progressão nas carreiras, e a renovação periódica do corpo docente.

3. Organização interna das instituições de ensino superior:

- Deve ser incrementada a democraticidade interna das instituições de ensino superior e das suas unidades orgânicas, com predomínio de órgãos colegiais paritários e com diminuição das hierarquias entre docentes. Deve ser combatida a desigualdade no acesso à investigação e à docência para minorias, eventualmente com a criação de cotas. Devem ser ponderados mecanismos para alcançar a paridade em cargos de direção ou níveis mais elevados de formação e da carreira, dada a disparidade verificável entre a feminização acentuada da academia nos ciclos inferiores de formação e os “telhados de vidro” que ainda mostram que o topo da carreira e a gestão do ensino superior são masculinos.

4. Cultura:

 – A Universidade deve assumir-se como um lugar de cultura, no sentido amplo, incorporando conhecimento e artes, saberes e criação, liberdade crítica e originalidade expressiva, construtora de alternativas. Ao invés de se deixar acantonar num lugar de produção de conhecimento, tecnologia e inovação (em tudo o que esta retórica tem de restritivamente neoliberal), a Universidade deve assumir-se como sede de resistências, ponto de origem ou congregação de ideias desobedientes, potenciadora de contracorrentes de pensamento, na confluência de ativismos políticos, sociais e estéticos com as ciências, as quais não devem prescindir de uma dimensão de intervenção pública no sentido do bem comum. Neste sentido, a academia deve reforçar-se enquanto comunidade com a promoção de transversalidades criativas, que integrem todos os agentes aos mais diferentes níveis.

Na dimensão ritualística que, inevitavelmente, faz parte das comunidades académicas, a ligação ao passado deve privilegiar a preservação de memórias de resistência e de insubmissão, em detrimento de práticas – ou praxes – que consolidam e reforçam hierarquias, relações de poder autoritárias e conformismos de vária ordem. Para além de contribuir para o controlo do corpo social como um todo, estas praxes invertem a razão de ser da academia e colocam-na, ela própria, na linha de conformidade dos poderes que têm vindo a retirar-lhe o papel de sede por excelência do exercício do pensamento crítico e de contrapoder. Combater a praxe, neste sentido, é combater pela academia no mais rigoroso sentido do termo

Tudo isto significa que, numa hegemonia neoliberal e num ambiente de crescente fascismo social sob democracias aparentes, estaremos a pedir às sociedades e aos poderes reais que aceitem muito mais do que pagar o “supérfluo” – a ópera, de que falava no início. Estaremos a pedir-lhes aquilo que contradiz e pretende inverter a lógica por que se regem e que os sustenta. Estamos a pedir-lhes um “mundo de pernas para o ar”, com a academia como centro irradiante de liberdade e esperança. Mesmo se tudo parece conspirar contra nós, não podemos abdicar deste sonho: um outro mundo possível a partir de uma outra academia possível.


Catarina Isabel Martins - Docente da Universidade de Coimbra

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