Está aqui

O "modelo Alemanha": da sua instrumentalização política à realidade

Em França, o "modelo Alemanha" festeja neste momento a sua ressureição. Mas não "o capitalismo do Reno" [elogiado por Michel Albert, em 1991, sob o título "Capitalismo contra Capitalismo", quando se anunciava a sua extinção] que significava, na altura:"Estado providência", "relações industriais equilibradas" e uma densa rede entre bancos e empresas. Com a aparição do capitalismo dito financeiro, este modelo não é senão um vestígio de história. Hoje em dia, quando falamos do "modelo Alemanha", é ao mercado de trabalho que nos referimos.

Com efeito, enquanto o desemprego atinge níveis recorde na Europa, verifica-se uma descida do mesmo na Alemanha. Teria sido mesmo esse o caso em janeiro de 2012, não tivesse o emprego descido ligeiramente nas áreas da construção e obras públicas, agricultura e, depois do Natal, no comércio de retalho, como todos os anos nessa época. Com 3,082 milhões de desempregados e desempregadas (números oficiais), foi no entanto atingida a taxa de desemprego mais baixa dos últimos 20 anos e, consequentemente, o registo inegualável de 41,6 milhões de pessoas empregadas (elevada taxa de emprego, portanto).

Quando traduzido, o "modelo Alemanha" significa competitividade através da transformação do mercado de trabalho. Resumindo: Agenda 2010 (sob a coligação SPD-Verdes), cuja elaboração foi supervisionada pelo social-democrata Gehrad Schröder (chanceler de 1998 a 2005), com as leis Hartz: as quatro leis acerca da flexibilização do mercado de trabalho que se prolongam de 2003 a 2005. Devem o seu nome a Peter Hartz, antigo chefe do pessoal da Volkswagen.

Assim se tornou a falar de G. Schröder, entretanto caído no esquecimento, não quando inaugurou os sórdidos oleodutos ou gasodutos ao serviço da Gazprom, mas sim quando teve a honra de jantar com o presidente da República francesa, Sarkozy. Schröder mostrou o seu reconhecimento através de maledicência socialista:"Como secretário do Partido Socialista, François Hollande trabalhou em estreita colaboração com Oskar Lafontaine, não comigo."

Na realidade, as leis Hartz, espinha dorsal da Agenda 2010, deixaram traços profundos no mercado de trabalho alemão. Com 7,8 milhões de trabalhadores pobres, a Alemanha detém o recorde europeu na categoria "pobreza apesar do emprego": apesar de empregadas a tempo inteiro,  500 000 pessoas estão abaixo do limiar da pobreza,  de tal modo que são obrigadas a acrescentar aos seus rendimentos os benefícios sociais.

São chamados de "Aufstocker" (os trabalhadores "sustentados", "aumentados" - sic! - pela ajuda social). Um trabalhador temporário em dez encontra-se sob estas condições. Estes benefícios, adicionados aos 7 milhões de mini-jobs desfiscalizados, custam todos os anos mais de 4biliões de euros à Segurança Social.

Dumping concorrencial mais ajudas sociais, é assim que funciona, portanto, o novo "modelo Alemanha". Este regime de mercado de trabalho viu o nascimento de uma sociedade a duas velocidades entre desempregados e desempregadas:

- De um lado aqueles que têm esperança de encontrar um novo emprego após um curto período de desemprego, mesmo que as condições se deteriorem cada vez mais. Isto inclui trabalho cada vez menos de acordo com as suas qualificações e mesmo perdas crescentes de rendimento. E tudo isto avança no sentido das aspirações daqueles que iniciaram este modelo: “flexibilidade graças à disponibilidade para fazer concessões”.

- Do outro lado, os desempregados de longa duração que recebem os benefícios Harz IV e que, segundo um novo inquérito do Centro de Emprego alemão, atingem os 1,056 milhões. Haveria muitos mais, não tivessem as estatísticas sido maquilhadas de diferentes maneiras e contabilizados 105,000 desempregados entre os 55 e 64 anos.

Sobre esta “sociedade” de desempregados e desempregadas a duas velocidades, há uma nova “sociedade” a três velocidades:
- Os trabalhadores “permanentes”(CDI) ou em emprego normal.
- Os trabalhadores temporários.
- Os trabalhadores empregados em regime de subcontratação de serviços.

Durante anos, o aumento do trabalho temporário estava na agenda dos responsáveis pela gestão do pessoal das empresas. Na altura da crise de 2009, era a reserva de força de trabalho “flexível”, passível de demitir rapidamente e readmitir com a mesma rapidez. Em setembro de 2001, contavam-se 910,000 trabalhadores temporários na Alemanha. Desde então, poderiam contar-se na casa de 1 milhão. Isto porque, mesmo após a introdução de um salário mínimo para os trabalhadores temporários, a IG Metal exigiu, aquando de negociações em curso, um alargamento dos direitos de cogestão [participação que não implica um direito efetivo de veto, mas com efeitos de cooptação nas estruturas da “direção”!] dos delegados do pessoal para pôr termo a esta expanção e voltar a atribuir ao trabalho temporário o seu papel inicial: um “equilíbrio económico” na política de emprego aquando de picos de produção e números recorde de encomendas. Nunca para substituir um emprego normal.

Aquilo que é novidade, é o emprego para “os contratos de subcontratação de serviços”. E esta forma  de emprego tem ganhado força, particularmente na indústria automóvel, que de momento ainda vai de recorde de produção em recorde de produção.

Estes contratos de subcontratação são ainda pouco regulados, não existe salário mínimo.

- Primeiro exemplo, o da BMW em Leipzig. Metade dos operários vem de empresas de subcontratação, estreitamente ligadas ao ordenante, que poderá ser também um subempreiteirode uma outra firma. Os operários empregues pela firma WISAG (que vende-aluga múltiplos “serviços” e portanto os trabalhadores e trabalhadores para esses “serviços” na indústria, catering, aviação ou outros setores) montam os eixos num entreposto a menos de 10 metros da cadeia de montagem da BMW. Levantar os eixos e as caixas de velocidade. Aparafusar. A cada 67 segundos. A média de idades é de 33 anos.Não há tempo a perder. A cereja no topo do bolo: o serviço de produção WISAG, inicialmente uma empresa de limpezas, trabalha por conta da Thyssen Krupp Automotives que, por sua vez concluiu, com a BMW, um contrato de subcontratação da produção de eixos. Com essa finalidade trouxe a WISAG ao colo na qualidade de empresa contratante. Porque, para os empregados em regime de subcontratação, o salário contratual da IG Metall não é válido, enquanto que os trabalhadores temporários da BMW a ele têm direito.

- Segundo exemplo, Audi em Ingolstadt. Aí, já há anos que os contratos de subcontratação de serviços são habituais entre os técnicos de informática e os engenheiros. Um “equilíbrio” foi estabelecido entre contratos externos e internos. Não há números fiáveis. Os contratos de subcontratação não aparecem no departamento do pessoal, são contabilizados como “ novos materiais” na secção de aquisição. Na Audi, em Inoglstadt, os trabalhadores temporários recebem os mesmos salários que os empregados “permanentes”. Pelo contrário, aqueles que tenham sido empregados em regime de subcontratação de serviços ganham entre 500 e 800 euros menos e trabalham 40 horas por semana em vez de 35. Não têm direito a bónus e não têm direito à “participação” nos lucros. Em 2012, este valor atingia os 6500 euros. Não podem jamais beneficiar do seguro de velhice da empresa e os seus filhos não têm acesso aos jardins de infância da mesma. Na cantina têm que pagar o dobro da taxa uma vez que não têm direito aos subsídios de que beneficiam os outros empregados. Em Ingolstadt, já há mais contratos de subcontratação de serviços do que contratos temporários, tanto que o responsável da IG Metall fez a seguinte constatação: a organização do mercado de trabalho explodiu completamente.

A BMW e a Audi são casos exemplares.Os contratos de subcontratação de serviços não são instrumentos de flexibilidade reservados apenas às indústrias metalúrgica e elétrica. Segundo o sindicato NGG (Nahrung-Genuss, Gastätten), até 90% dos empregados dos matadouros trabalham à base de contratos de subcontratação, muitas vezes de 12 a 16 horas por dia. Prática, aliás, já há muito tempo conhecida no sector da construção e obras públicas. Neste sector, são raras as empresas que não trabalham segundo este modelo. Mais recentemente, o chefe da IG BAU [construção e obras públicas], Klaus Wiesehügel, experienciou a dificuldade existente no combate a hábitos há muito enraizados.

O sindicato participava na construção de habitações em Heidelberg. Uma das condições importantes do concurso era a não existência de contrato de subcontratação. Após meses de pesquisas, uma empresa mostrou-se disposta a preencher estas condições. Quando os trabalhos começaram, K. Wiesehügel fez algumas pesquisas acerca da mesma. Resultado: é verdade que neste estaleiro da IG Bau nenhum trabalhador possuía este tipo de contrato. Em contrapartida, a empresa havia retirado os seus “trabalhadores permanentes” de outros estaleiros, substituindo-os por contratos de subcontratação de serviços!

Modelo Alemanha em prática. Imitação desaconselhada...

Artigo traduzido por Lídia Pereira para o Esquerda.net

(...)

Neste dossier:

Alemanha, o país das maravilhas?

Uma brutal desigualdade social entre ricos e pobres, um regime de produção que banalizou a precariedade e a desvalorização salarial, são os rostos obscuros de uma economia que é tida como exemplar. Apesar da política conservadora receber o apoio de muitos na Alemanha, há várias vozes ativas que contra ela se levantam. Dossier organizado por Fabian Figueiredo

O "modelo Alemanha": da sua instrumentalização política à realidade

O "modelo Alemanha" festeja neste momento a sua ressureição. Mas não "o capitalismo do Reno"que significava, na altura:"Estado providência", "relações industriais equilibradas" e uma densa rede entre bancos e empresas. Com a aparição do capitalismo dito financeiro, este modelo não é senão um vestígio de história. Hoje em dia, quando falamos do "modelo Alemanha", é ao mercado de trabalho que nos referimos. Por Richard Detje

As especificidades do capitalismo alemão

Já na era fordista, o capitalismo alemão caracterizava-se por uma forma de desenvolvimento fortemente orientado para a exportação. Mas ao contrário de outros países orientados para a exportação, como a Itália, a indústria de exportação alemã nunca teve de se refugiar na desvalorização da moeda nacional, para defender a sua capacidade competitiva. Por Thomas Sablowski

O governo alemão não faz o que prega

Os sucessivos governos alemães, tanto os presididos pelo chanceler Schröder como as coligações governadas pela Sra. Merkel, não seguiram as políticas de austeridade que estão a impor ao resto dos países da zona euro e muito em particular aos do Sul.

Os alemães têm razão para estarem aborrecidos acerca da “mentira da pobreza”, mas enganaram-se no alvo

A descoberta de que a riqueza líquida dos alemães é menor do que a do Sul tem mais a ver com salários baixos do que com riquezas imaginárias.Por Costas Lapavitzas

A falsa fachada da Alemanha

A Alemanha apresenta-se a si mesma e ao resto de Europa como um país sem crise mas nos últimos anos os níveis de desigualdade dispararam. Por Rafael Poch de Feliu

A política de Merkel: uma catástrofe para a Europa mas também para a Alemanha

É redutor dizer que a política de Angela Merkel persegue os interesses alemães. Isto só é verdade se considerarmos apenas os interesses dos ricos, dos bancos alemães e da indústria alemã. Esta política não tem no seu interesse as pessoas. Por Heinz Bierbaum

Como anda a Alemanha?

Que a chanceler alemã Angela Merkel e o seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, são dos políticos mais odiados em Portugal e na Grécia (...) Mas qual é a razão para que Angela Merkel e o seu partido democrata-cristão CDU/CSU estejam com resultados positivos em todas as sondagens? Por Hans Gerd-Öfinger

A questão não é o euro, mas sim os europeus

Ao invés de políticas de austeridade, precisamos de um programa de investimento europeu para o desenvolvimento de infraestruturas públicas, serviços públicos, para a prevenção e para reestruturação sócio-ecológica. Por Bernd Riexinger, presidente do Die Linke.

Conclusões sobre o debate europeu do Die Linke: "Agir de forma solidária na Europa"

As políticas de contenção da troika (FMI,UE e BCE) levaram ao colapso dos sistemas públicos de pensões. A par disso, com os obrigatórios programas de privatizações, temos hoje Estados que se desmantelam a si próprios. O estado dos Estados piorou. Não dá para continuar assim.

Alemães também participam na manif europeia de 1 de junho

Coligação de ativismos convoca manifestação em Frankfurt, a sede do Banco Central Europeu, apelando à solidariedade e à resistência no coração do “regime europeu de crise”.