O Esquerda.net divulga pela primeira vez ao público de língua portuguesa dois documentos importantes para fazer avançar a compreensão dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977 em Angola.
O primeiro é o fac-símile de um memorando enviado em 14 de junho de 1977 por Raúl Castro, então Ministro das Forças Armadas Revolucionárias, ao irmão “Comandante em Chefe” Fidel, dando-lhe conta do “estado de opinião adverso” que encontrou entre as autoridades angolanas em relação aos funcionários e especialistas de segurança soviéticos radicados em Luanda. O segundo é um memorando de Jorge Risquet, chefe da Missão Civil de Cuba em Angola, enviado a Fidel em 13 de julho de 1976. Os dois documentos fazem parte de um arquivo que está público desde outubro de 2013 no Wilson Center, e que é resultado da investigação do professor de Relações Internacionais Pietro Gleijeses para o seu livro “Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991”. Gleijeses teve acesso aos arquivos cubanos, que são fechados, e depois de muitas negociações com as autoridades de Havana conseguiu convencê-las a tornar públicos os documentos citados no livro.

Simpatia dos soviéticos por Nito e companheiros
No Memorando, Raúl Castro pormenoriza episódios e conversas que teve durante a visita a Luanda que demonstram a desconfiança crescente de Agostinho Neto e do Bureau Político do MPLA em relação aos soviéticos.
“O eixo do problema consiste nas evidências que Neto, Ludy, Onambwe e outros dirigentes do MPLA têm no sentido de que vários cabecilhas do golpe, muito próximos a Nito, mantiveram encontros formais com diplomátas soviéticos”, afirma Raúl Castro no Memorando, que é encabeçado pela inscrição “Exemplar único”.
“Esta informação, verificada pelo testemunho de vários detidos, veio somar-se ao desgosto de Ludy [Kissassunda, membro do BP] pela conduta e as manifestações do Coronel Teodoroff, assessor soviético da DISA”, que ter-se-ia comportado “com inaudita insensibilidade nas relações com o dirigente do MPLA, tanto de trabalho quanto pessoais”.
Por outro lado, prossegue o irmão de Fidel, numa conversa com [o general cubano] Méndez [Cominches], Ludy comunicou-lhe que Pedro Fortunato, o principal “nitista” detido até então, declarara que Nito, Van Dunem e ele próprio se tinham reunido com o Embaixador Soviético. Dois dias depois, conduzido a falar com jornalistas, relata Raúl Castro, Fortunato, julgando estar diante de jornalistas estrangeiros, mudara as declarações e justificara o golpe, responsabilizando os cubanos pelo seu fracasso, e acrescentando ainda as embaixadas da Bulgária e do Vietname como tendo sido sedes de reuniões com os “nitistas”.
A contrainteligência cubana detetou a existência de tradutores e especialistas militares soviéticos que defendiam abertamente Nito e os seus camaradas.
A contrainteligência cubana também detetou a existência de tradutores e especialistas militares soviéticos que defendiam abertamente Nito e os seus camaradas, concordando todos que “Nito, Bakalov e os demais implicados ‘são amigos da União Soviética’”. E houve até o caso do coronel Grishin que ajudou a esconder e a transportar de automóvel um sedicioso, relata o ministro cubano.
Raúl Castro citou ainda o jornalista soviético Valery Valkov que acusava a embaixada da URSS de “manter desorientado o Centro de Moscovo”. Para este jornalista, os “nitistas” eram “aventureiros irresponsáveis que brincavam com o sangue derramado por cubanos e angolanos.”
Ponderando que não via o perigo de desenvolver-se uma tendência anti-soviética no seio do Bureau Político do MPLA, o ministro cubano advertiu que “equívocos desta natureza (…) deixam profundas marcas de ressentimento, viciam as relações e criam uma desconfiança que, a longo prazo, pode resultar altamente prejudicial para o futuro de Angola, e inclusivamente para os interesses estratégicos do socialismo na área. Torna-se, portanto, imprescindível examinarmos aqui a conveniência ou não de transferir esta informação aos soviéticos, e de que forma fazê-lo se assim o decidirmos.”
Infelizmente, este é o único documento do arquivo de Piero Gleijeses no Wilson Center referente aos acontecimentos do 27 de maio de 1977 e suas repercussões. No seu volumoso livro, o especialista em relações internacionais dedica menos de quatro páginas ao sucedido, o que mostra o seu pouco interesse pelo tema. Mas o Memorando de Raúl a Fidel Castro vem confirmar que os acontecimentos daquele dia deram origem a um dos momentos mais tensos nas relações entre a direção de Neto e os “camaradas soviéticos”.
Gleijeses poderia ter trazido muito mais luz ao que realmente sucedeu no dia 27 de maio, já que nas suas notas bibliográficas cita os documentos ‘‘Síntesis sobre nuestra participación en los sucesos del 27.5.77 en la República Popular de Angola”, do coronel Jesús Bermúdez Cutiño, de 31 de maio, e um memorando de Jorge Risquet (o chefe da missão civil cubana em Angola) a Castro datado do próprio dia 27 de maio. Mas não o faz, nem estes dois documentos estão no arquivo do Wilson Center.
Brejnev fingiu-se de surdo
Segundo as memórias de Karen Brutentz, antigo vice-presidente da Secção Internacional do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), citado por José Milhazes no livro “‘Golpe de Nito Alves’ e Outros Momentos da História de Angola Vistos do Kremlin”, Agostinho Neto chegou mesmo a ir pedir satisfações ao Kremlin. Durante visita oficial a Moscovo, em agosto de 1977, no encontro com o secretário-geral do PCUS, Leonid Brejnev, o presidente de Angola tomou a palavra e disse: “Eu vim aqui porque ocorreu uma coisa, um levantamento, e gostaria de saber pessoalmente de si se Moscovo participou no conluio contra mim ou não? Porque, segundo me informaram, muitos dos vossos homens estiveram envolvidos”.

Brejnev não respondeu ao questionamento de Agostinho Neto e limitou-se a ler o discurso já preparado.
“Claro que todos os olhares se concentraram em Brejnev”, prossegue Brutentz. “Os presentes, e principalmente os representantes soviéticos, esperavam que ele reagisse à pergunta do líder angolano, desmentisse, em conformidade com a realidade, semelhante suposição, confirmasse que nós não tínhamos renunciado ao apoio a Neto. ”
Mas Brejnev atuou como se não tivesse ouvido o questionamento e limitou-se a ler um texto previamente preparado que falava sobre a situação económica da URSS, sobre as previsões das colheitas… “Parecia que nós supostamente fugíamos à pergunta e, desse modo, confirmávamos o fundamento das dúvidas de Neto. Todas as tentativas de ‘soprar a resposta’ através da entrega de novos papéis não surtiram qualquer efeito. Depois da leitura, Brejnev pronunciou com um tom ou interrogativo ou afirmativo: ‘Li bem’. E, só depois do intervalo – do almoço oficial – depois de um ‘acrescento’ pronunciado por um dos participantes do encontro, foi conseguido atenuar parcialmente a impressão provocada”.
Agostinho Neto e a sua fação viriam a pôr de lado as desconfianças, provavelmente por temor de perder o apoio económico dos soviéticos. E assim, em 10 de dezembro de 1977, discursando diante de um busto de Lenine, Agostinho Neto anunciava no 1º Congresso a transformação do MPLA em Partido do Trabalho, “o partido da classe operária que irá juntar, numa firme união, operários, camponeses, intelectualidade revolucionária e outros trabalhadores fiéis à causa do proletariado”.
Isto é: depois de mandar fuzilar a ala pró-soviética do seu partido e de provocar um massacre de dezenas de milhares de angolanos, Neto colou-se sem qualquer pudor ao país que servia de modelo aos seus inimigos internos. Era a lógica da Guerra Fria a funcionar em pleno.
Embaixador português diz que Fidel ligou para Moscovo
O Memorando agora conhecido reforça a ideia de que cubanos e soviéticos tiveram posições muito diferentes em relação a Angola: enquanto Moscovo desconfiava de Agostinho Neto, Havana nunca teria duvidado em lhe dar apoio. Será interessante, se algum dia os arquivos cubanos forem finalmente abertos, verificar até que ponto é que isto foi verdade no 27 de maio de 1977.
Há quem considere que as diferenças de posição e a autonomia da atuação dos cubanos tinham claros limites. É o caso de José Fernandes Fafe, o primeiro embaixador português em Havana (1974-1977), que afirmou recentemente que a opção dos cubanos de aceder ao pedido de Neto e esmagar a sublevação protagonizada pela corrente de Nito Alves e José Van Dunem não foi tomada autonomamente. Entrevistado a 14 de fevereiro de 2016 pelo jornalista e historiador António Louçã, Fafe, relatou desta forma o pedido desesperado de ajuda do presidente angolano ao homólogo cubano na manhã do 27 de Maio de 19771:
“O Neto telefona [a Fidel] duas vezes, dá-lhe a entender que é decisivo que os cubanos intervenham, mas o Fidel demora a responder. Há no MPLA quem diga: ‘eles demoraram, esses cubanos bem demoraram’.”
"A resposta de Fidel demorou horas, o que deve ter parecido ao Neto séculos, porque aquilo não estava dominado."
“Se eles pensassem dois segundos”, prosseguiu José Fernandes Fafe, “percebiam que uma coisa dessas não se faz sem telefonar para Moscovo,” até porque “corria que a embaixada soviética estava metida e era pró-Nito Alves.” E recorda: “o que os cubanos contavam é que a resposta de Fidel demorou horas, o que deve ter parecido ao Neto séculos, porque aquilo não estava dominado.”
Também baseado na lógica da Guerra Fria e no conhecimento de como atuava a direção cubana, este raciocínio, apesar de não ser baseado em provas documentais, faz todo o sentido.
1A gravação desta entrevista, bem como de todas as outras que António Louça fez para a sua biografia de Varela Gomes, publicada em 2016 pela editora Parsifal, está depositada no Centro de Documentação 25 de Abril. José Fernandes Fafe faleceu em fevereiro deste ano, aos 90 anos.