Jogo de espelhos: Swaps e opacidade no sector empresarial do Estado

A destruição de documentos fundamentais para a compreensão de um processo de contratualização com perdas potenciais contabilizadas em 3300 milhões de euros (com a garantia de que esse valor só pode ser reavaliado em alta) redefine os termos da discussão. Por Luís Bernardo

08 de setembro 2013 - 0:21
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A discussão em torno da contratualização de swaps no sector empresarial do Estado tem sido relativamente acesa. A dimensão técnica desses contratos e produtos financeiros tem sido abordada com particular intensidade – o trabalho de economistas críticos tem sido fundamental a esse respeito, tendo em conta a complexidade inerente à implementação do conceito que subjaz a um swap.

A realocação de risco é, afinal, o propósito último de qualquer mercado financeiro e de todo o sistema financeiro: um swap é a expressão mais elegante desse propósito. Mas, como todo o produto financeiro complexo, o swap também simboliza as contradições inerentes ao sistema financeiro contemporâneo: incapaz de compatibilizar a obsessão ideológica com a perfeição original do mercado, a necessidade constante de inovação financeira (se o mercado é considerado perfeito ex ante, a inovação financeira traduz uma desconfiança fundamental a respeito da capacidade computacional do mercado) e a assimetria de informação disponibilizada, ceteris paribus, aos atores do sistema financeiro, um swap é uma bomba-relógio. Legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo, um produto financeiro complexo tem o potencial, num sistema financeiro demasiado interdependente (e incapaz de realocar risco de forma eficiente ou tendencialmente eficiente), de causar estragos ilimitados.

Os 3300 milhões de euros em perdas potenciais no sector empresarial do Estado não significam mais que isto: a captura cognitiva de representantes do interesse público (definidos como “gestores”), a depredação do erário público em benefício de instituições extrativas – o sistema financeiro está, hoje, reconstituído em megamáquina extrativa – e a instauração de um regime de opacidade emergente (porque arbitrário na sua aplicação e imprevisível nos seus termos).

A destruição de seis conjuntos de “papéis de trabalho” referentes à contratualização de swaps no sector empresarial do Estado é apenas um dos corolários intermédios deste regime de opacidade emergente.

A ideologia da transparência não parece deter uma carga punitiva suficientemente convincente para desmotivar os decisores políticos e os executores operacionais de proceder à destruição de outputs fundamentais à compreensão, monitorização e avaliação do trabalho efetuado pelas instituições; a saga dos papéis de trabalho revela a ferocidade com que o governo em funções pretende manter o status quo da captura institucional, cognitiva e extrativa; um status quo que abarca, de resto, governos socialistas.

A violação do estatuto de atividade e semi-atividade atribuídos a documentos administrativos produzidos no contexto da Inspeção-Geral de Finanças pode, eventualmente, configurar a prática de crime; no entanto, a gravidade do ato de destruição prende-se com aquilo que revela acerca da relação entre o Estado e os cidadãos (se nos ativermos a um liberalismo relativamente pobre).

Hoje, o Estado português reconstitui-se em leviatã monitorizador; os cidadãos da República, cujo direito ao acesso à informação pública está plasmado na Constituição da República Portuguesa, na Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e no Código do Procedimento Administrativo, não podem exercê-lo sem o beneplácito prévio de uma administração pública partidarizada e definida pela clivagem crescente entre cargos de nomeação política e uma força de trabalho cada vez mais precária.

A destruição de documentos fundamentais para a compreensão de um processo de contratualização com perdas potenciais contabilizadas em 3300 milhões de euros (com a garantia de que esse valor só pode ser reavaliado em alta) redefine os termos da discussão e remete os swaps à condição de meras notas de rodapé.

Porque aquilo que está verdadeiramente em causa é uma das condições fundamentais à sobrevivência de um regime democrático: a responsabilidade e responsabilização das instituições e agentes públicos. Não me refiro à publicação obrigatória de toda a informação produzida pelas instituições públicas; na realidade, essa não parece ser uma solução desejável, por razões operacionais e políticas. No entanto, as instituições públicas devem manter toda a informação produzida, por um período alargado, para efeitos de monitorização inter-institucional sistemática.

A destruição dos “papéis de trabalho”, ainda que após processos de auditoria interna, significa que outras instituições auditoras, como o Tribunal de Contas, não poderão replicar os procedimentos reportados por auditorias prévias; se essas auditorias prévias forem feitas por entidades privadas, como a Ernst&Young, o caso torna-se mais grave.

Num momento em que a ideia de governo aberto começa a ganhar força (resta saber se os seus promotores reconhecem as potencialidades e os limites dessa ideia), a polémica em torno dos swaps e da evidente má-fé que presidiu à destruição dos “papéis de trabalho” mostra que o austeritarismo já não é uma ameaça, mas uma realidade com consequências irreversíveis e mais abrangentes do que as análises técnicas dos ativos subjacentes a um swap podem revelar. Esse é, certamente, um dos desafios: ir além dos lamentos pela opacidade e informação subtraída, de forma dolosa ou negligente, e reivindicar aquilo que as classes dominantes pretendem enfeudar e é um direito fundamental de todos: informação. Sobre swaps, sobre procedimentos de auditoria, sobre manutenção e arquivamento de documentos.

Quando nos debruçamos sobre estas questões, percebemos que não estaremos a reivindicar apenas informação sobre procedimentos administrativos irrelevantes; estaremos a reivindicar uma democracia menos classista e um sistema político mais sensível às exigências do coletivo de que deriva toda a soberania: o povo.

Artigo de Luís Bernardo, membro da comissão de auditoria da IAC (auditoriacidada.info)

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