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Imprensa, capitalismo ou a subtil contra-ofensiva conservadora

Comentando a presença de 3 milhões de pessoas na Marcha do Orgulho em S. Paulo [2007], a generalidade da imprensa portuguesa referia a festa por oposição à presença de uma agenda reivindicativa. Nos breves espaços informativos que a notícia conquistou a imagem era o seu elemento mais nobre e o discurso em directo dos participantes (mas não organizadores do evento) justificava com naturalidade essa ausência da política. A notícia tornou-se relevante, não pela enorme massa humana que a concretizou nem nas condições específicas em que o fez, mas pelo facto de ter sido interpretada exclusivamente pelo seu lado comemorativo.
Artigo de João Carlos Louçã
Passando por cima do facto de também as comemorações serem momentos de posicionamento face ao mundo e às suas histórias que escolhemos evocar, ou ainda de que um acontecimento desta dimensão não se pode resumir a uma só motivação, esta interpretação manipuladora da realidade é evidentemente a contra-ofensiva conservadora aos ventos de liberdade que varreram as ruas de S. Paulo e se repetem periodicamente em tantas outras cidades pelo mundo.
A ocupação do espaço público, a celebração de identidades de resistência à opressão, a exuberância dos "amores que não se escondem" mais é, de alguma maneira, uma enorme conquista da humanidade. Conquista recente e longe da irreversibilidade. Conquista parcial porque em demasiados países do mundo a homossexualidade é crime, é punida e perseguida. Vitória dolorosa porque assente em gerações intermináveis de vítimas, entre as do passado e as que todos os dias se lhes juntam. Orgulho ainda porque a discriminação é hoje combatida em muito mais frentes e por muitas mais pessoas.
Mas o tratamento noticioso da Marcha de S. Paulo é só um sinal de uma questão permanente naquilo que é a percepção do movimento LGBT enquanto movimento social - o que no Estado Espanhol se começou a discutir como "peseta rosa" é nem mais nem menos do que os sintomas do súbito interesse do mercado capitalista por uma parte da população até então colocada à margem. A marginalização cultural ou a discriminação legal teriam assim uma outra face que era a da igualdade perante o mercado. É então criada a ficção de que os homossexuais seriam pessoas com poder económico acima da média - para o que contribuiria o facto de não terem famílias para sustentar. Em muitas cidades os circuitos das culturas gay e lésbica eram objecto de investimento em larga escala, criando serviços em bairros que aos poucos se converteram numa espécie de ilhas de tolerância perante os costumes e de concentração das ofertas para os interesses específicos dessa população LGBT com poder de compra.
E perante este fenómeno há sempre quem pretenda esvaziar este movimento social global e reduzir todas as suas motivações aos elementos de festividade e consumo. Por cá, tivemos mesmo um presidente de Câmara em Lisboa que em início de mandato resolveu promover em conjunto com poderosos agentes económicos uma "Parada do Amor" ao mesmo tempo que assobiava para o lado ao apoio ao Arraial Pride da Ilga-Portugal . Em muitas cidades europeias este tipo de realizações são momentos de enorme confluência de pessoas e máquinas de realizar lucros fabulosos. Só é mesmo preciso o investimento na música e na cenografia, uma vez que a garantia de liberdade sexual é o enorme pressuposto mobilizador e está adquirido à partida. Também é preciso que não chova, como Santana Lopes deve estar bem lembrado.
Mesmo em Lisboa, onde se realizará no dia 23 o 10º Arraial Pride, é evidente que o seu crescente sucesso é também resultante da mobilização acrescida da sua componente comercial. E para a direita deste movimento este facto é o bastante para se colocarem numa espécie de limbo não-reivindicativo onde a política cede o lugar à comemoração e à festa. Mas é evidentemente errado querer separar política e festa. A festa só existe porque a discriminação social continua e a reivindicação da própria existência através da visibilidade persiste em ser um movimento de subversão. A diversidade das redes associativas LGBT em todo o mundo comprova a sua origem profunda no tecido social, com as enormes contradições deste mundo em que vivemos.
A apropriação capitalista de um segmento de mercado entre as pessoas de orientação fora da norma heterossexual diz mais deste sistema económico e do pragmatismo do dinheiro quando confrontado com o edifício de valores que o suportam, do que do movimento social que supostamente veio transformar. Este é obviamente diverso, em crescimento e conjugação com tantas outras causas pela igualdade e emancipação, com muito mais festas mas simultaneamente com muito maior capacidade de intervir na esfera pública e de reivindicar direitos. Por isso é que afirmar que o que se passou em S. Paulo é sintoma de despolitização ou de falta de agenda reivindicativa é voltar as costas a uma realidade muito mais complexa. Desde logo porque o Brasil é um país onde a homofobia mata diariamente (1) e os direitos civis da população LGBT estão a léguas de ser assegurados, como aliás em grande parte dos países do mundo. Todos podemos confundir os desejos com a realidade, negar as evidências e construir justificações para a domesticação da energia destas mudanças, mas a verdade é que a discriminação continua a existir, a mobilização social que se lhe opõe cresce e os instrumentos de acção política de que dispomos vão ganhando espaço de concretização efectiva na sociedade.
Outro exemplo bastante curioso foi a forma como Gisberta deixou de ser designada enquanto"travesti Gisberto" para passar a sê-lo pela sua verdadeira identidade de género. Há pouco mais de um ano o assassinato brutal de uma transsexual sem-abrigo no Porto, centrou justamente atenções e chocou muita gente. Nos primeiros dias a imprensa atribuiu à vítima nome e género masculino, para após levantar o primeiro véu desta mesma identidade (em grande medida pela pedagogia de várias associações LGBT) passar a tratar Gisberta pelo seu nome e pela sua verdadeira identidade. Ao ponto que já só mesmo a Igreja católica falava do "Gisberto" e, num supremo desvario, ter mantido esta designação até durante a missa do funeral. Mas já nesse momento e até hoje Gisberta era uma transsexual feminina perante o país, num exemplo de como também podemos esperar trabalhos equilibrados e isentos de preconceito por parte dos meios de comunicação.
(1) Em São Paulo, o aumento da visibilidade gay parece estar acompanhado do crescimento da homofobia. A cidade que possui a maior parada gay do mundo --no ano passado superou San Francisco (EUA) e Toronto (Canadá), com 1,5 milhão de pessoas-- continua líder no ranking de assassinatos de homossexuais. Foram 19 casos em 2004 (157 no Brasil inteiro).
João Carlos Louçã, Junho de 2007
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