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A escola é reprodutora de desigualdades sociais

Em entrevista à Página da Educação , Angelina Carvalho, Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (UP),  aborda a dimensão socializadora da escola, alguns dos factores que, de acordo com uma investigação que realiza, conduzem ao abandono escolar precoce e critica o "discurso hipócrita" sobre a escola de alguns fazedores de opinião pública.

Após um percurso pela docência e pela formação contínua de professores, dedica-se agora à tese de doutoramento que, segundo pude saber, debruça-se sobre as estratégias sociais e pessoais de inserção na vida activa de jovens adultos que abandonaram precocemente a escola. Pode falar-nos um pouco acerca deste trabalho?

Sim, a minha tese de doutoramento retoma uma preocupação que já tinha abordado na tese de mestrado e tem por objecto de estudo jovens da zona do Cerco do Porto que abandonaram precocemente a escola ou que têm formas precárias de a percorrer, mas que, apesar disso, se reorganizam ou reconstroem as suas vidas com maior ou menor grau de sucesso social, inclusivamente através de formas que podemos considerar marginais. Em todo este processo considero a escola como ponto de convergência daqueles sujeitos no processo de construção dos seus percursos.

Neste trabalho tento descobrir através dos seus discursos porque desistiram da escola, porque não investiram nela como forma de promoção social, que outros pontos de interesse encontraram, como se reorganizam, e sobretudo tentar compreender como se constrói a dimensão deles de "cidade", porque é interessante descobrir que para os jovens que permanecem ali há como que uma referência ao ethos em que se envolveram, embora esse ethos seja uma zona empobrecida da cidade. Em suma, tento perceber qual é a influência que a escola exerce ou eventualmente não exerce nos percursos de vida e que outros espaços ou instituições têm essa influência.

Que conclusões pode retirar partindo dos dados preliminares que já recolheu?

Apesar de os dados disponíveis serem ainda escassos, parece confirmar-se a ideia de que a escola é reprodutora de desigualdades sociais, que existe uma cultura ambiente que reafirma essas lógicas de empobrecimento, que resultam numa situação de acomodação para alguns e, muitas vezes, uma revolta que acaba por não se organizar como projecto mas como uma situação adaptativa.

Isto corresponde um pouco àquilo que eu já tinha feito no trabalho anterior, mas dessa vez fi-lo junto de jovens que não concluíram a escolaridade obrigatória – teriam à volta de 20 anos na altura em que os entrevistei –, procurando saber como é que eles viam a escola e porque razão a abandonaram antes do tempo. De uma forma geral, cheguei à conclusão que o faziam para arranjar outras saídas para a vida que a escola não lhes proporcionava e sobretudo não garantia. Estes, com quem agora trabalho, são mais velhos e já tiveram oportunidade de se reorganizar e ter um percurso de vida próprio, apesar de eventualmente para alguns poder ser precário.

Nesse estudo que desenvolveu anteriormente que motivos apresentavam os jovens para a desistência do percurso escolar?

Esse estudo está publicado pelo Instituto de Inovação Educacional, intitula-se “Da Escola para o Mundo do Trabalho: uma Passagem Incerta”, e nele se conclui que a escola não vai ao encontro das expectativas deles. Há mesmo uma entrevista muito interessante de um jovem – na altura com 18 anos e metalúrgico de profissão – que, apesar de não ter concluído a escolaridade obrigatória, consegue descrever a escola através de uma curiosa metáfora: uma corrida de obstáculos ao longo da qual as pernas vão ficando cansadas, e que quando se sente que a marcha continua e não temos pernas para ela o melhor é desistir.

Outra das razões pela qual a escola não corresponde às suas expectativas é o facto de sentirem que o ensino está descartado da realidade – um deles diz mesmo: uma coisa é eu estar a trabalhar na oficina do meu patrão, darem-me um pedaço de ferro e eu transformá-lo numa peça, vendo qual é o objecto que me vai sair das mãos, outra coisa é a escola onde eu faço coisas que não sei para que servem. Ou seja, a não organização do ensino com um sentido retira-lhe, em si, o próprio significado.

Outra das observações diz respeito à forma como se processa a avaliação. Eles referem nas entrevistas que os professores só lhes dizem que algo está errado no final de uma tarefa e sentem que tudo o que estiveram a fazer estava mal desde o princípio, ao passo que quando estão na oficina o patrão ou mestre detecta o erro e diz-lhes isso em tempo útil, mostrando de que forma devem proceder para obter um bom resultado. Ou seja, emerge nesta percepção íntima que alguma coisa falha quando se classifica e não se avalia os processos dando uma resposta satisfatória.

Por outro lado, está também presente nos seus discursos a baixa expectativa que a própria família origina nos seus percursos. Eles não evocam isso directamente, mas ao dizerem que os pais também não estudaram, têm a quarta classe ou menos, e que o tio, que também não estudou, tem uma oficina para onde irão trabalhar, estão a transformar esta visão numa expectativa face ao futuro.

Que os pode fazer desistir, inclusivamente, de ambicionar determinados percursos profissionais…

Sim, recordo-me até de uma outra entrevista onde um deles dizia que quando era miúdo sonhava ser astronauta, mergulhador, piloto de fórmula 1, advogado, médico ou engenheiro, pondo todas elas no mesmo plano de igualdade; logo, para estes jovens ser advogado ou engenheiro coloca-se no plano da impossibilidade e do sonho na mesma medida que para um miúdo da classe média, cujos pais desempenham profissões liberais, se coloca no plano do sonho ser astronauta mas não advogado ou professor. Ou seja, no fundo a escola não lhes garante uma saída, e como não garante essa saída mais vale sair e tentar arranjar uma ocupação. A dedicatória do livro refere precisamente isso: "ao David, ao Joel, … (e a tantos outros que não recordo) que saltaram borda fora antes de serem empurrados". Com estes mais velhos, que se calhar alguns deles serão os mesmos, tentei compreender de que forma o ethos cultural envolvente também reafirmou estas opções, lhes deu ou não razão ou se eventualmente eles alteraram estes percursos encontrando posteriormente formas alternativas de formação ou de reestruturação social.

A escola de hoje consegue ainda cumprir o seu papel socializador?

A escola deveria ter uma função eminentemente socializadora, mas podemos questionar-nos com base em que valores morais e em que modelos. As situações que vivemos em termos sociais são tão caóticas que é difícil atribuir unicamente à escola essa responsabilidade, porque ela não passa de uma ilha. Uma ilha no sentido em que está cercada por uma série de situações e de contextos sociais que muitas vezes lhe são completamente opostos, cercada por uma série de exigências e de expectativas como se esses contextos não existissem. Cercada por uma sociedade cada vez mais impregnada de um modelo hipócrita, dividida entre o que quer e o que pratica.

Assumimos, por exemplo, que a escola deveria educar para a solidariedade e verificamos que as práticas sociais são de um profundo egoísmo e de um absurdo de ignorância em relação às condições de existência de muitos dos nossos concidadãos; que a escola deveria educar para os valores e vemos que responsáveis políticos e dirigentes que "metem cunhas" e tentam legitimá-las, cometem batota e tentam justificá-la, alteram as regras do jogo e tentam que sejam aceites, assumem isso com a maior à vontade e nada lhes é imputado; que a escola deveria educar para valores que implicam uma certa estética - entendida com ética, como forma de estar na vida e de nos relacionarmos com os outros -, e confrontamo-nos com programas televisivos que, para sobreviverem, vivem à base do fácil, do agressivo, do mau gosto…

Como havemos de nos espantar que os alunos digam palavrões e se empurrem nos corredores ou à entrada da sala de aula quando um dos programas mais vistos na televisão mostra um conjunto de pessoas que utiliza palavrões na sua linguagem quotidiana? Como havemos de nos escandalizar que os alunos destruam material se ídolos, jovens sim, mas com responsabilidades, que representam Portugal num acontecimento desportivo internacional destroem instalações e equipamento e assistimos, logo de seguida a uma tentativa de branqueamento da situação por parte de responsáveis desportivos e até políticos? Que referências podem ter os alunos? É uma hipocrisia a sociedade estar a pedir à escola para dar aos alunos aquilo que ela própria não consegue dar. Por isso, se me perguntar se a escola hoje ensina para os valores, eu respondo que não ou que ensina pouco.

Essa é uma das críticas que a sociedade imputa à escola: ela já não ensina os jovens. Afinal qual é o papel da escola hoje se já não ensina ou ensina pouco?

Nesse tipo de crítica que se imputa à escola, acusando-a de já não ensinar, eu poria a tónica no “já”. A escola “já” não cumpre o seu papel, mas quando é que alguma vez cumpriu? Na opinião de muitos, já cumpriu mas eu diria que já o fez quando a selecção social se fazia na própria sociedade e eram entregues à escola jovens "escolarizáveis". Agora não cumpre porque a sociedade também “já” não cumpre, sozinha, esse papel e lança na escola com expectativas de "ser para todos" aqueles que à partida estão "marcados para morrerem escolarmente". Então, a única maneira de resolver este problema é proibir o acesso à escola dos jovens não escolarizáveis, perdoe-me o cinismo… É este tipo de discrepância, de não querer olhar para os problemas que a própria sociedade está a produzir e atirando as responsabilidades para a escola, que se torna o cerne da questão.

Muitos dos discursos que na comunicação social criticam a escola – estou a lembrar-me do José Manuel Fernandes e da Filomena Mónica, do Público, ou do Henrique Monteiro, do Expresso – são habitualmente hipócritas, porque só teriam razão de ser as suas críticas se a escola fosse frequentada exclusivamente por meninos da classe média. Estes senhores levantam muitas questões relativamente à escola mas não nos dizem o que havemos de fazer aos miúdos que não são originários da classe média, aos “outros, àqueles que vivem situações sociais e familiares muito complicadas, e de que forma havemos de descartá-los… na opinião desses senhores a escola tem de saber resolver todos os problemas, mas não pode porque não consegue.

Esses discursos são manipuladores, porque se é verdade que houve uma certa euforia na relação com a aprendizagem – nomeadamente através das práticas do movimento da escola moderna, da escola nova, que nos mostram a importância de trabalhar de outra forma, de nos ligarmos aos alunos quando estão em dificuldade – muitas das afirmações que são feitas não correspondem minimamente à verdade. Um artigo no jornal Público dizia que, hoje em dia, graças aos pedagogos, os alunos podem fazer o que querem porque não lhes são pedidas regras, que podem ou não fazer os trabalhos de casa, que podem escolher aquilo que querem ou não querem estudar... Nunca ouvi nenhum pedagogo afirmar tal coisa. Afirma-se que isso foi dito mas não se diz quem o refere, nem onde e utilizam-se estes argumentos demagogicamente.

Apesar de se poder discutir a justiça dessas afirmações, o facto é que elas vão reflectindo o estado de espírito da maioria da opinião pública... Não teme que a pressão exercida pela sociedade e pelo próprio poder político tenda a converter o carácter eminentemente socializador da escola numa perspectiva tendencialmente normalizadora?

Corremos esse risco, de facto. Mas antes isso fosse possível, porque eu não acredito que o seja… Pode assumir-se essa postura em termos teóricos mas na prática não é fácil socializar ou transmitir normas de comportamento básicos sem que eles tenham sido apreendidos na primeira fase de socialização, na infância, junto da família. Aos alunos custa-lhes  por vezes compreender coisas simples como o facto de não deverem escrever com a cabeça deitada na mesa... Se muitas vezes não se consegue fazê-los compreender a importância destas normas básicas de comportamento, de que forma iremos conseguir transmitir-lhes normas mais elaboradas?

Então sejamos honestos: vamos estabelecer um conjunto de normas a partir das quais excluímos e descartamos os indesejáveis e passamos a ter uma escola expurgada daqueles que perturbam o sistema. Esses senhores também deveriam ter a coragem de afirmar isso, assumir que a escola, segundo eles, além de meritocrática deveria deixar o caminho livre para os "escolarizáveis" e propor o que fazer aos "outros". De contrário, podemos elaborar regulamentos mais ou menos rígidos mas que continuarão a não resolver as questões de base.

A existência de uma sociedade multicultural é cada vez mais visível no nosso país. De que forma está a escola a acolher e a trabalhar com as minorias étnicas e culturais? Não se corre o risco de as normalizar culturalmente em vez de respeitar as suas origens, tentando até tirar vantagem dessa diversidade?

Apesar de já se ter começado a trabalhar a questão da interculturalidade na escola há mais de uma dezena de anos - nomeadamente eu própria o fiz há cerca de 12 anos num projecto que desenvolvemos em equipa na Escola Superior de Educação do Porto, coordenado por Milice Ribeiro dos Santos. Penso que, actualmente, a escola continua a não estar muito preparada para lhe dar resposta. Além disso, pelo que me é dado a conhecer, existe de facto muita pressão social no sentido da sua normalização. "Se a escola é esta, a cultura dos outros terá de adaptar-se a ela", é o pensamento recorrente. Mas podemos ser mais racionais e pensar que querer conhecer o outro não é uma questão de bondade mas antes de eficácia pedagógica e educativa. Porém, julgo que nem neste sentido ela é ainda trabalhada pela escola e pelos professores.

Apesar de tudo, começa a verificar-se alguma preocupação na formação inicial dos professores relativamente a esta matéria, tanto do ponto de vista pedagógico como ético, perspectivando a escola como um lugar de aceitação da interculturalidade e da multiculturalidade no plano da aceitação dos valores do outro, com a relativização que isso pode exigir. Mas em termos práticos vamos sobretudo confiando na assumpção de que os portugueses não são racistas e que isso, só por si, será um bom princípio, quando não o é.

Tem alguma mensagem em particular que gostasse de deixar aos leitores de A PÁGINA?

Mais do que aos leitores, gostaria de relembrar aos fazedores de opinião que devem ser mais sérios nas acusações que dirigem e nas afirmações que deixam passar para a opinião pública. Aos professores, sobretudo os mais jovens, que, tendo consciência da condição precária que é neste momento o próprio acto de estar numa escola, tentassem perceber que quando se sugere uma atitude de reformação e de reflexão dos contextos pedagógicos seria importante que eles próprios assumissem essa postura, tenham uma palavra a dizer e não se limitem a consumir o que os outros dizem. De facto, a escola atravessa um momento difícil, mas não é regressando à escola do tempo dos nossos pais que se resolve o problema, porque essa escola já não existe e essa sociedade também não. É preciso encontrar soluções novas para novos problemas.

(...)

Neste dossier:

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