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“É preciso voltar a humanizar as cidades”

Miguel Ângelo Silva decidiu abrir uma loja de bicicletas há cerca de três anos e meio porque sempre gostou de utilizar este meio de locomoção por razões de saúde, rapidez nas chegadas aos locais de destino, e também para usufruir da cidade de Lisboa, algo que os automóveis não permitem.

Quando entramos na build my bike, situada na zona do Cais do Sodré, em Lisboa, percebemos rapidamente que já existe uma quantidade muito apreciável de equipamentos que permitem andar de bicicleta com um padrão de conforto elevado.

Ângelo Silva serviu-se dos conhecimentos que já tinha sobre o mundo das duas rodas, e afirma sem reticências que os portugueses estão a aderir cada vez mais às bicicletas, independentemente do facto de haver ainda um défice de infraestruturas e falta de respeito por quem opta por este meio de transporte que muitas vezes é reduzido à condição de “entrave” pelos automobilistas.

Em relação à orografia da cidade, afirma que esta não é obstáculo ao uso da bicicleta mas antes uma desculpa e que ainda inibe alguns de tomarem a decisão de reduzir a utilização do carro.

Por isso rejeita liminarmente os lugares-comuns ligados à utilização da bicicleta como meio de transporte quotidiano e faz a separação entre aqueles que a usam como forma de recreação e os que a adotaram para as suas deslocações diárias.

O responsável da loja rejeita a diabolização do automóvel porque considera que não se deve enveredar por uma guerra com vista a erradicá-lo dos meios urbanos, algo que considera “impossível e insensato”.

Ligação umbilical ao automóvel

A sua opinião vai antes no sentido de se equilibrar o nível de utilização dos diversos meios de transporte, algo que considera tarefa difícil porque os portugueses estão ainda ligados de uma forma quase umbilical ao automóvel e têm um sentimento muito arreigado em relação ao facto de serem proprietários.

Para Miguel Ângelo Silva, a proteção dos utilizadores de bicicletas não está ainda devidamente assegurada, até porque estes são o elo mais fraco de quem anda no asfalto.

“Não basta acrescentar no Código da Estrada medidas de proteção porque estas depois acabam por não ter expressão prática, uma vez que as pessoas não estão informadas sobre elas e o seu nível de cumprimento acaba por ser irrelevante.”, sublinha.

O proprietário da build my bike fala mesmo no “desrespeito absoluto” pelos utilizadores de bicicletas e reprova o tipo de comportamento das pessoas que se sentam ao volante e que muitas vezes acaba por ter contornos de “extrema violência”.

“Podemos estar perante a pessoa mais civilizada do mundo mas quando esta entra num carro transforma-se totalmente e não raro o seu comportamento acaba por ser animalesco”, nota.

Na opinião deste empresário, a utilização regular deste meio de transporte acaba por dar um contributo decisivo para a humanização das cidades porque a relação com o espaço físico, com as pessoas, com os cheiros ou com a paisagem circundante acaba por ser real, algo que não acontece quando andamos de carro onde só vemos prédios, semáforos e outros veículos automóveis.

"É preciso voltar a humanizar as cidades", sublinha.

Apesar de já ter afirmado que não gosta de utilizar frases feitas em relação a este assunto, acaba por confessar que a bicicleta têm a enorme vantagem de devolver a cidade às pessoas.

“Uma urbe é algo que não faz sentido se os cidadãos não forem o seu elemento principal e por isso a sua secundarização transformou muitas cidades em algo sem vida própria, uma amálgama de pessoas sem espaço e sem tempo para a fruição daquilo que as rodeia”, observa, referindo que é imprescindível criar razões que justifiquem o facto de vivermos nas cidades”.

Em relação às vantagens de natureza económica, Miguel Ângelo Silva começa por dizer que o chamado comércio tradicional é um grande beneficiário dos meios alternativos de locomoção, porque é mais fácil para uma pessoa que anda, por exemplo, de bicicleta parar e entrar numa loja de uma qualquer rua para fazer uma compra já que os centros comerciais estão pensados para o grande consumo e consequentemente para os utilizadores do automóvel.

Recuperar a dinâmica social e económica

“Há toda uma dinâmica do ponto de vista social e económico que se foi perdendo e que é preciso recuperar, sob pena de cada vez mais a vida nas cidades caminhar para uma degradação insuportável”, refere. E acrescenta: “É assim necessário abrir as alternativas de mobilidade das pessoas que passam por andar a pé, de transportes públicos, de bicicletas para que a utilização do automóvel seja cada vez mais racional”.

A redução da velocidade obrigatória para 30 quilómetros é para Miguel Ângelo Silva fundamental não só porque reduz os índices de poluição, criando ao mesmo tempo um atmosfera menos agressiva.

“Para muitos, a imposição de velocidades mais reduzidas é um factor acrescido para aumentar os engarrafamentos mas é precisamente o contrário porque, desta forma, as variáveis relacionadas com a condução alteram-se e o trânsito acaba por fluir de uma forma mais rápida”, afirma.

A build my bike é frequentada por todo o tipo de pessoas, desde as mais humildes que têm um bicicleta muito modesta e com problemas que querem reparar para utilizar nas suas deslocações diárias devido a constrangimentos de natureza económica, mas também por jovens que as usam para as suas deslocações diárias.

“Somos igualmente procurados por estrangeiros que percorrem a Europa de bicicleta e procuram-nos para melhorar o equipamento, já que neste caso estamos perante pessoas que fazem longos percursos”, observa.

Segundo Miguel Ângelo Silva, a loja é ainda procurada por pessoas que tem bicicletas antigas que pretendem recuperar para coleção ou para utilização em atividade de lazer.

O responsável da loja refuta ainda as questões colocadas em relação ao facto de a cidade de Lisboa ser ou não ciclável dizendo que essa interrogação só pode ser colocada por quem nunca andou de bicicleta em Lisboa.

“No entanto e se houver alguém que sinta receio em o fazer tem sempre a possibilidade de usar uma bicicleta elétrica que faz maravilhas pelas colinas de Lisboa”, finaliza.

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Neste dossier:

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