1. Na cimeira europeia de 12 de julho de 2015, a resposta à democracia do referendo grego foi a ocupação financeira da Grécia. A imposição de uma humilhação nacional, contra a vontade inequívoca de um povo, seguida de mais três anos de punição social, não pode acabar bem. A União Europeia mostrou, perante o olhar de milhões de cidadãos, que tudo fará para defender o seu projeto de austeridade, mesmo que isso implique atropelar a democracia. A resposta será por isso construída contra esta União, na Grécia e por toda a Europa.
2. O processo dos últimos meses encerra duas conclusões essenciais. Em primeiro lugar, que existe uma grande coligação entre conservadores e socialistas, coligação dirigida pela Alemanha, que é hoje quem manda na União Europeia, e que impõe uma ditadura dos mercados e uma política de austeridade, desemprego, pobreza e desigualdade. Em segundo lugar, que esta União não permite um governo com uma política alternativa e, confrontada com um governo de esquerda, não hesita em usar todos os meios para o derrubar.
3. A mesma União Europeia que convive bem com a construção de um novo e vergonhoso muro na Europa, pela mão do governo de extrema-direita da Hungria, não hesitou em colocar a união monetária em risco para tentar derrubar o governo do Syriza. Não foi apenas Schauble que, ao propor a expulsão hostil da Grécia da moeda única, quebrou o tabu do euro como moeda estável e comum a diversos Estados. A inédita decisão do BCE de cortar liquidez aos bancos gregos por motivos políticos, sublinha a urgência de mecanismos nacionais de controlo da banca, independentes do BCE.
4. Ao longo de um quarto de século, a União Europeia, definida pelos seus tratados, tem sido um dispositivo sem controlo democrático e vocacionado para a institucionalização da ordem neoliberal: exposição das economias nacionais à concorrência externa, concentração do capital, diminuição do Estado Providência e pressão sobre os rendimentos do trabalho, são alguns dos seus principais elementos. A moeda única foi um passo crucial, e natural, na consagração deste projeto. Em primeiro lugar porque a eliminação do risco cambial é condição essencial para uma livre circulação de capitais, condição essencial para a afirmação e desenvolvimento da finança. Em segundo lugar porque cria o ambiente institucional que consagra a austeridade e a desvalorização laboral como únicos mecanismos de ajustamento económico: i) anula a política cambial e monetária, concentrando-a nas mãos de uma instituição imune ao escrutínio democrático e dominada pelos interesses do governo alemão e das grandes instituições financeiras mundiais; ii) limita a autonomia orçamental, restringindo-a, cada vez mais; iii) impede a existência de uma política industrial. As metas impostas são impossíveis de cumprir, mas o seu incumprimento dá às instituições europeias o poder de pré-determinar os orçamentos nacionais. Acima de tudo, a burocracia europeia concentra a decisão, e revelou-se absolutamente imune à pressão popular direta ou à própria relação de forças social e política dentro de cada país. A brutalidade contra a Grécia é o retrato dessa imunidade à democracia.
5. A esquerda que representamos opôs-se sempre a este modo de integração europeia e à criação da moeda única. Porém, diante da sua concretização, admitiu que ela seria refundável por uma relação de forças mais favorável e nunca desistiu da disputa da relação de forças à escala nacional e europeia. O movimento alter-globalização, há uma década, parecia dar credibilidade a essa hipótese. Desde então, a esquerda concentrou-se em propostas capazes de refundar a Europa em termos democráticos e de criar mecanismos de correção dos desequilíbrios macroeconómicos existentes: Senado europeu com paridade entre Estados, reforma dos estatutos do BCE, reforço do orçamento comunitário, mutualização das dívidas. Todas foram inviabilizadas ou abandonadas pela social-democracia europeia, absorvida pelo autoritarismo federalista, incapaz de fazer frente aos interesses financeiros, e, por isso, hoje parceira empenhada na punição da Grécia.
6. Os programas de austeridade impostos por Berlim e Bruxelas justificaram e alimentaram a mentira dos países terem entrado em crise por os seus povos terem vivido acima das suas possibilidades. Esta mentira, reproduzida em Portugal pelo governo liderado por Passos Coelho, procurou esconder e fazer esquecer a verdadeira origem da crise: especulação financeira e explosão da bolha imobiliária norte-americana. A crise de 2007-2008, amplificada pela falência do Lehman Brothers – que representava 10% do crédito habitação mundial – teve como resposta dos diversos governos a salvação da banca e a socialização dos prejuízos. Na sequência desta crise, a finança concentrou a especulação nos títulos da dívida dos países periféricos europeus. O BCE financiou a 1% bancos comerciais, que depois compraram títulos da dívida soberana a juros muito mais altos. O capital conseguiu rendas elevadas e isentas de risco, fazendo das dívidas públicas o maior mercado financeiro global. Chamados a absorver os prejuízos da banca, os povos europeus passaram ainda a ser o mealheiro deste imenso e lucrativo negócio das dívidas soberanas. Através de duras medidas de austeridade, que têm como único propósito assegurar uma elevada taxa de rentabilidade à finança, os rendimentos do trabalho foram transferidos diretamente para o serviço da dívida.
7. Depois de Maastricht e Lisboa, o Tratado Orçamental, em 2012, constitucionalizou a austeridade e a proibição de políticas de defesa os direitos dos trabalhadores ou de expansão do Estado Social. Perante o primeiro governo antiausteridade que a Europa conheceu, a lógica total dos tratados europeus foi concretizada na prática. Foi assim que o bloco central alemão instalou a sua lei sobre 18 países e que o próprio diretório franco-alemão se reduziu à figura da chanceler. O governo alemão é hoje o centro todo-poderoso da decisão política e do controlo orçamental.
8. A esquerda deve aprender com a história recente, e saber posicionar-se claramente perante ela. O desenlace destes seis meses de enfrentamento, onde a abertura do governo de esquerda grego para um acordo viável entre Estados iguais contrastou com o extremismo e a vingança dos ‘parceiros europeus’, transformados em credores, demonstra que uma esquerda comprometida com a desobediência à austeridade e com a desvinculação do Tratado Orçamental tem de estar mandatada e preparada para a restauração de todas as opções soberanas essenciais ao respeito pela democracia nacional.
9. O Bloco de Esquerda, como sempre afirmámos, defende uma política de esquerda que recuse mais sacrifícios em nome da moeda única. Afirmar a existência dessa alternativa é hoje, antes de mais, uma batalha pela democracia; referendar o tratado orçamental e iniciar um processo de reestruturação da dívida pública são passos essenciais desse caminho. É com a clareza desse mandato, - que, como assumimos na última convenção, pode resultar num rompimento com a União Monetária, -, que os representantes eleitos do Bloco atuam em defesa de um caminho alternativo ao autoritarismo europeu.
10. A esquerda internacionalista projeta-se numa nova aliança europeia, herdeira da luta contra o fascismo e contra o militarismo e das conquistas sociais do pós-guerra. Esse projeto democrático e de cooperação incorpora as lições do atual ataque autoritário e ambiciona novas metas comuns nos planos social, ambiental, cultural e dos direitos humanos. Quando crescem na Europa os partidos xenófobos e nacionalistas, que prometem um retorno ao nacionalismo autoritário como alternativa ao sistema criado por uma União Europeia disfuncional, é urgente uma resposta política que combata este caminho. Essa resposta tem sido construída pela mobilização popular e depende da capacidade do movimento de resistência e insubmissão em toda a Europa. Reconhecendo esse facto e as imensas dificuldades do percurso, o Bloco de Esquerda reitera o seu compromisso na construção de uma alternativa ampla das forças que combatem a austeridade e lutam pela democracia.