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Como uma boneca de trapos

UM SÍMBOLO DA ACTUAL CARNIFICINA
A criança cujo cadáver jaz, como uma boneca de trapos, ao lado dos carros que a levavam para um lugar seguro, é um símbolo desta guerra do Líbano; foi lançada para fora do veículo em que fugia com a família de uma aldeia do Sul do Líbano - seguindo as próprias instruções de Israel. Como os pais aparentemente morreram no mesmo ataque, o seu nome ainda é desconhecido. Não é um soldado desconhecido, mas uma criança desconhecida.

Por Robert Fisk, em Beirute
Publicado originalmente no The Independent, 20/7/2006

A criança jaz como uma boneca de trapos

UM SÍMBOLO DA ACTUAL GUERRA DO LIBANO

 Por Robert Fisk em Beirute

 Publicado originalmente no The Independent, 20/7/2006

Quando é que vamos começar a usar as palavras "crime de guerra"? Quantas mais crianças têm de juncar os escombros dos ataques aéreos israelitas antes que rejeitemos a frase obscena "danos colaterais" e comecemos a falar de julgamento por crimes contra a Humanidade?

A criança cujo cadáver jaz, como uma boneca de trapos, ao lado dos carros que a levavam para um lugar seguro, é um símbolo desta guerra do Líbano; foi lançada para fora do veículo em que fugia com a família de uma aldeia do Sul do Líbano - seguindo as próprias instruções de Israel. Como os pais aparentemente morreram no mesmo ataque, o seu nome ainda é desconhecido. Não é um soldado desconhecido, mas uma criança desconhecida.

A história da sua morte, contudo, está muito bem documentada. No sábado, os habitantes da pequena aldeia de fronteira de Marwaheen receberam ordens das tropas israelitas - aparentemente usando um megafone - para abandonar as casas até às 6h da tarde. Marwaheen fica perto do ponto onde a guerrilha do Hezbollah atravessou a fronteira há uma semana para capturar dois soldados israelitas e matar outros três, o ataque que provocou esta última guerra cruel no Líbano. Os aldeões obedeceram às ordens e inicialmente pediram protecção ao batalhão ganês das tropas da ONU locais.

Mas os soldados do Gana, obedecendo às directivas da ONU estabelecidas em Nova York em 1996, recusaram-se a permitir a entrada dos civis libaneses na sua base. Por uma terrível ironia, as regras que a ONU estabeleceu depois de os seus soldados terem dado protecção a civis durante um bombardeamento israelita no Sul do Líbano em 1996, no qual 106 libaneses, mais de metade dos quais eram crianças, foram massacrados quando os israelitas bombardearam o quartel da ONU em Qana, onde tinham dado o refúgio.

Assim, o povo de Marwaheen seguiu para o Norte num comboio de carros que, poucos minutos depois, perto da aldeia de Tel Harfa, foi atacado por um caça-bombardeiro F-16 israelita. Bombardeou todos os carros e matou pelo menos 20 dos civis que viajavam neles, muitos dos quais mulheres e crianças. Doze pessoas foram queimadas vivas nos seus veículos, mas outras, incluindo a criança que jaz como uma boneca de trapos perto do comboio civil carbonizado, cuja fotografia foi tirada - com grande risco - por um fotógrafo da Associated Press, Nasser Nasser, foram atiradas para fora dos carros pela explosão das bombas e caíram nos campos e no vale perto do cenário do ataque. Não houve desculpas ou condolências dos israelitas por essas mortes.

Inocentes continuaram a morrer ontem nos ataques aéreos de Israel em todo o Líbano. Cinco civis morreram quando um míssil israelita atingiu uma casa perto da cidade de Nabatea. Três membros da família Hamed foram mortos, junto com a empregada ceilanesa. Na aldeia de Srifa, no Sul, os ataques israelitas destruíram um bairro de 15 casas onde residiam pelos menos 23 pessoas - sem que houvesse forma de fazer chegar guindastes a essa parte do país - não havendo maneira de resgatar sobreviventes no meio dos escombros.

As autoridades civis libanesas, contudo, puderam anunciar a lista dos mortos provocados por um raid aéreo israelita na aldeia de Nabi Chit, no Vale do Bekaa; nela constavam Ali Suleiman; Daoud Hazima; Khadija Moussawi e os filhos Bilal, Talal e Yasmine; Maouffaq Diab; Ahmed e Khairallah Mouawad; Mustafa Jroud e Bushra Shuqr. Pelos menos três dos nomes eram mulheres. Outros quatro civis morreram num raid aéreo na aldeia de Loussi, no Líbano oriental.

Os israelitas vangloriam-se constantemente da sua "certeira" ou "cirúrgica" precisão dos ataques Se isto é verdade, então há demasiados civis assassinados para dizer que cada caso foi um acidente.

E como a lista de alvos de Israel inclui obviamente alvos civis - bombardeados deliberadamente para punir a população - cresce a evidência de que esses ataques aéreos têm a intenção de matar inocentes, assim como guerrilheiros do Hezbollah que Israel afirma estar a combater.

É verdade que o Hezbollah está a matar civis em Israel, mas os seus mísseis não são precisos e o Ocidente, que deu não mais que uma tímida desaprovação à investida retaliatória de Israel, deve evidentemente esperar mais altos padrões das Forças Armadas de Israel do que dos homens que tanto Israel quanto o presidente George Bush descrevem como "terroristas".

Por exemplo: porque é que os israelitas bombardearam e destruíram a sede da empresa Liban-Lait no Vale do Bekaa, a maior fábrica de leite do Líbano? Porque é que bombardearam a fábrica do principal importador dos produtos da Proctor and Gamble do Líbano, baseado em Bchmoun? Porque é que destruíram uma fábrica de papelão fora de Beirute? E porque é que os aviões israelitas atacaram um comboio de ambulâncias novas trazidas da Síria ontem, veículos doados pelas autoridades médicas dos Emirados Árabes Unidos? As ambulâncias estavam claramente identificadas, de acordo com uma fonte oficial dos Emirados. Eram todos alvos "terroristas"? A menina do campo de de Tel Harfa era um alvo "terrorista"?

Ontem de manhã tivemos um exemplo da falta de cuidado com os alvos no Líbano. Um avião israelita disparou quatro mísseis num terreno baldio no bairro cristão de Ashrafieh, em Beirute. Os alvos foram dois camiões de perfuração de poços abandonados com os pneus vazios. Os tubos dos camiões eram supostamente lançadores de mísseis? Se sim, quem iria imaginar que o Hezbollah alguma vez tentasse esconder essas armas numa área cristã de Beirute, onde o Hezbollah acredita que vivem muitos dos colaboradores de Israel?

Em Beirute e em Nabatea, a segurança libanesa afirma ter prendido "colaboradores" que estavam a "pintar" casas e carros com fósforo, para guiar a destruição dos jactos israelitas.

Ao mesmo tempo, o ministro das Finanças do Líbano, Jihad Azour, declarou que 45 pontes foram destruídas em todo o Líbano e que 60 mil famílias - 500 mil civis - tiveram que abandonar os lares.

Ontem, milhares de estrangeiros - muitos deles libaneses com dupla nacionalidade - continuaram a deixar o país por autocarro e navio, incluindo centenas de britânicos que começaram a evacuação no navio HMS Gloucester. Os americanos estavam a sair por via marítima, apesar de se dizer que uma empresa de segurança em Aman - a SPO Middle East - foi contratada pelos EUA para evacuar os seus cidadãos por autocarro, a um custo de 3 mil dólares por cabeça. Esses, é claro, são os que têm sorte, os que vão terminar a jornada em Damasco ou em Chipre, em vez de num comboio calcinado em Tel Harfa.

(...)

Neste dossier:

Dossier Guerra no Líbano

Com o apoio dos EUA, Israel espera isolar e derrubar a Síria, mantendo o domínio do Líbano. Uma guerra colonial prolongada está pela frente, já que o Hezbollah, como o Hamas, tem apoio de massas. Não pode ser definido como "terrorista". O Mundo Árabe vê as suas forças como combatentes da liberdade, que resistem à ocupação colonial.

“Inimigo número 1” de Israel

O Hezbollah (que quer dizer Partido de Deus) é uma organização político-partidária e uma milícia armada que nasceu apenas em 1982, decorridos já sete dos 15 anos que durou a guerra civil do Líbano. O seu objectivo principal era a expulsão do Exército israelita do Sul do Líbano, que acabou por se concretizar no ano 2000. Após o colapso do Exército do Sul do Líbano, uma força cristã de extrema-direita associada às tropas do estado judeu, os israelitas foram obrigados a recuar e abandonar a faixa de terreno que mantinham como um tampão, derrotados pela guerra de atrito que lhes movia a guerrilha.

Reportagem

Esta reportagem foi feita há quatro anos, quando o Líbano ainda curava as feridas de 15 anos de guerra civil e de uma reconstrução inacabada. Não foi difícil encontrar sobreviventes do massacre de Sabra e Chatila, um bairro degradado da periferia de Beirute, a apenas 15 minutos, de carro, do faustoso centro reconstruído da cidade. Também não foi  difícil encontrar quem quisesse recordar. A memória ainda está viva, como uma chaga.

Entrevista a James Petras

Nesta entrevista à rádio uruguaia Centenário, republicada no Rebelión, James Petras, professor de sociologia da Binghamton University, Nova York, afirma que o actual conflito vai prolongar-se, porque Israel é governado por uma visão megalomaníaca que tem interesses expansionistas próprios, que não se subordinam sequer aos dos EUA.

Como uma boneca de trapos

A criança cujo cadáver jaz, como uma boneca de trapos, ao lado dos carros que a levavam para um lugar seguro, é um símbolo desta guerra do Líbano; foi lançada para fora do veículo em que fugia com a família de uma aldeia do Sul do Líbano - seguindo as próprias instruções de Israel. Como os pais aparentemente morreram no mesmo ataque, o seu nome ainda é desconhecido. Não é um soldado desconhecido, mas uma criança desconhecida.

Blogs do Líbano

Vale a pena acompanhar alguns dos muitos blogs feitos a partir do Líbano. Eles dão informação directa, pouco filtrada, mas também transmitem a angústia de gente que vive num país bombardeado constantemente. No meio disto, é possível fazer arte, poesia...