Ascensão e queda de um negócio muito nebuloso

18 de maio 2007 - 0:00
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Quinze anos depois do boom das universidades privadas, os alunos escasseiam e a qualidade também. A busca dos lucros fáceis conseguidos à custa dos estudantes que não conseguiam lugar nas universidades públicas foi acompanhada da promiscuidade com o poder político de cada ocasião. A inspecção denunciou tudo mas não puniu ninguém.



Artigo de Miguel Reis, disponível no jornal Esquerda  



Acredite-se ou não em José Sócrates, indesmentível é o facto de apressadamente ter tentado concluir o seu curso numa universidade privada, a única hipótese que lhe garantia a celeridade e simplicidade desejadas para ser Engenheiro à força. E fê-lo porque era preciso, num país em que os títulos contam muito, não para encontrar um posto de trabalho seguro e estável (para isso o título não é suficiente, ao contrário das ilusões presentes na campanha "novas oportunidades") mas porque parecia mal a um "promissor político" a ausência de tal epíteto.





Toda a tinta que correu em torno do curso do primeiro-ministro teve o mérito de deslindar (para quem andasse distraído) o sinistro papel das universidades privadas na sociedade. O escândalo em que mergulhou a Universidade Independente, com acusações de crimes de fraude fiscal - abuso de confiança, burla agravada, falsificação de documentos, constituição de arguidos entre membros da direcção e accionistas - não é único. E nada disto surpreende quando estamos perante máquinas de fazer dinheiro, habilmente protegidas pelos nomes de inúmeros políticos que vão adornando o seu corpo docente. A competição instalada no mundo das privadas não se rege tanto pela bitola da qualidade oferecida mas mais pelas facilidades concedidas na obtenção dos valiosos canudos (a troco, obviamente de avultadas prestações mensais) que valem mais o estatuto do que o futuro. Não surpreendeu por isso que, no momento em que rebentou este escândalo, rebentou também uma verdadeira caça aos alunos da Uni, vítimas de todo o processo. Várias instituições privadas apressaram-se a dispensar estes alunos do pagamento da matrícula inicial, ou não valessem no seu conjunto cerca de 8 milhões de euros por ano, segundo cálculos feitos pelo Diário de Noticias.



O boom das universidades privadas deu-se essencialmente entre 1985 e 1995. A falta de investimento na criação de vagas e novas instituições no ensino superior público, responsabilidade directa dos Governos da altura, permitiu que as universidades privadas em Portugal crescessem por excesso de procura, com os milhares de estudantes que não conseguiram colocação nos estabelecimentos públicos.



Outra consequência deste aumento exponencial do ensino superior privado foi precisamente «uma transferência maciça de recursos da universidade pública para as novas universidades privadas, uma transferência de tal montante e tão selvagem que é legítimo concebê-la como um processo de acumulação primitiva por parte do capital universitário com a consequente descapitalização e desarticulação da universidade pública»(1)

 

Ao contrário do que sucedeu noutros países, em Portugal as Universidades Privadas não fixaram o seu próprio corpo docente (até porque se destacam em matéria de violação de direitos laborais dos professores) nem apostaram na qualidade: cresceram com os alunos que não conseguiram lugar nas universidades públicas, parasitando os recursos humanos do sistema público e tendo apenas como objectivo o lucro fácil. O prestígio resumia-se à inclusão de algumas figuras famosas no seu corpo docente, muitas vezes só para enfeitar.



Apoiado nesta permissividade e promiscuidade com o poder político, o sector do ensino superior privado cresceu vertiginosamente até 1996-97, passando os 110 mil alunos. Mas, a partir daí, a quebra foi constante.

Esta quebra está ligada a uma redução geral da procura, dado que o número de candidatos tem vindo a diminuir e as próprias vagas no ensino público vão ficando por preencher. A redução demográfica e a multiplicação de cursos demasiado específicos explica esta situação, embora ainda haja uma grande fatia significativa de alunos que recorre às universidades privadas por questões geográficas ou porque simplesmente não conseguiram entrar no curso pretendido no ensino público.

Dados do Observatório de Ciência e Ensino Superior mostram que houve uma perda de pelo menos 15 mil alunos entre os anos de 1997/98 e 2005/06 nas nove instituições privadas que ostentam o título de "universidade". Mesmo assim, em 2005, ainda representavam 30% do total de diplomados.



No início do mês de Abril, o Ministro da Ciência e Ensino Superior, Mariano Gago, anunciou que estava em curso uma inspecção a todas as Universidades Privadas. Foi um anúncio pomposo para uma medida que está prevista ser realizada todos os anos, mas que não tem poderes para investigar as contas das entidades instituidoras das universidades privadas. Segundo uma investigação do Jornal de Notícias, os critérios legais que orientam estas inspecções (número de docentes doutorados por aluno, número de docentes em tempo integral, medidas de controle dos "turbo-professores", etc.), apenas apanhariam na ilegalidade a Universidade Internacional. Avaliação bem diferente e mais rigorosa fez o CNAVES (Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior), que nos últimos quatro anos identificou mais de duas dezenas de cursos com "graves deficiências, algumas de natureza estrutural, com reduzidas perspectivas de recuperação imediata", quase todos nas Universidades Privadas. Nas conclusões, a comissão avaliadora avisava que "em caso de persistência desta avaliação, merecerá consequências negativas por parte da tutela". O que não aconteceu. O Ministério argumenta que os relatórios não recomendam o encerramento dos cursos nem das instituições.



Sabemos que apesar das vagas que vão ficando por preencher e da redução do número de candidatos no Ensino Superior, Portugal continua a ser dos países da União Europeia com a mais baixa taxa de licenciados. A origem do problema está na taxa de abandono escolar no ensino secundário, cerca de 40%, das maiores da Europa, e que reduz o número potencial de candidatos ao ensino superior. São por isso necessárias verdadeiras políticas de combate ao insucesso escolar no ensino secundário a par de um investimento no ensino superior público, para que as qualificações da população portuguesa possam dar o salto necessário.



Mas o caminho escolhido pelos governos (com especial destaque para o de Sócrates) não deixa dúvidas. As despesas com o ensino superior têm diminuído desde 2003 e estão agora abaixo dos 1% do PIB, destacando-se o maior corte orçamental de sempre no presente ano. É que não são apenas as portas escancaradas às Universidades Privadas que mostram que para o neoliberalismo o ensino público, ao serviço de toda a sociedade, é uma realidade incómoda (veja-se como mesmo hoje, o mercado privado do ensino nocturno é a única saída para centenas de trabalhadores-estudantes). Para lá dos cortes orçamentais, a lógica do capitalismo impõe ainda a submissão da universidade aos seus interesses, impondo modelos de gestão autoritários e "profissionalizados" que façam das instituições de ensino verdadeiras empresas, com professores proletarizados, sendo os alunos a matéria-prima que engrossará as necessidades do mercado ou a bolsa de desempregados.



Com Boaventura Sousa Santos, podemos dizer que a estratégia "consiste em tendencialmente eliminar a distinção entre universidade publica e privada, transformando a universidade, no seu conjunto, numa empresa, uma entidade que não produz apenas para o mercado mas que se produz a si mesma como mercado, como mercado de gestão universitária, de planos de estudo, de certificação, de formação de docentes, de avaliação de docentes e de estudantes" (1). A intenção deste Governo em transformar as Universidades em Fundações de direito privado confirma esta ideia. Combater a vampirização dos alunos pelas instituições privadas e a privatização camuflada das universidades públicas é um dos principais desafios que se colocam a uma esquerda transformadora, que aspira a uma sociedade do conhecimento de todos e para todos.





(1) Boaventura Sousa Santos: "A Universidade no séc.XXI: Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade"

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