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Argentina: Derrota de Macri cria uma nova relação de forças sociais

A vitória anunciada do peronista Alberto Fernández representa uma mudança de relação de forças sociais na Argentina. No terreno internacional, a saída de Macri trava o realinhamento impulsionado por Trump com o Grupo de Lima. O Esquerda.net entrevistou Aldo Casas e Juan Carlos Fernández, do Conselho de redação da revista Herramienta. Por Luis Leiria.
Protesto em Buenos Aires em setembro de 2019. Foto de EPA/Fabian Mattiazzi, Agência Lusa.
Protesto em Buenos Aires em setembro de 2019. Foto de EPA/Fabian Mattiazzi, Agência Lusa.

Que balanço fazem do governo Macri?

Aldo Casas: O governo Macri foi muito pior do que podíamos supor todos aqueles que o caracterizávamos como um governo claramente reacionário, que vinha corrigir para a direita as limitações que tinham tido os três períodos do kirchnerismo. O kirchnerismo, sobretudo o último governo de Cristina, já tinha sentido o impacto da crise internacional: começou a haver recessão económica, começou a haver mais desemprego, a inflação começou a subir lentamente. O cavalo de batalha de Macri era justamente “é preciso acabar com a inflação”.

Ora a primeira medida de Macri foi uma grande desvalorização do peso, provocando um salto descomunal da inflação; abriu completamente as importações, o que provocou que empresas relativamente importantes do ponto de vista da quantidade de postos de trabalho, como o calçado, têxtil, ou brinquedos, desaparecessem em meses. Isentou de impostos o setor das minas, e reduziu substancialmente os impostos do rendimento agrário, isto é, o que pagam os produtores pela exportação da soja, etc.

O resultado disso foi que a economia entrou em recessão. O governo investiu muito em políticas sociais – nisso, eles que tinham criticado o kirchnerismo pelos planos de ajuda social, não só os mantiveram, como os aumentaram substancialmente para assegurar um certo piso de estabilidade social. Não queriam que houvesse explosões provocadas pela fome. Tirando isso, que realmente conseguiram – que não houvesse explosões como na fase final do governo Alfonsín ou no governo de De La Rua –, a situação económica foi-se deteriorando cada vez mais.

Aldo Casas
Aldo Casas

Os únicos negócios que favoreceram foram os de gente estreitamente ligada ao círculo da grande burguesia: o setor energético, onde aumentaram as tarifas substancialmente, provocando um enorme impacto na vida das pessoas: gás, eletricidade, gasolina subiram às nuvens.

Além disso, fizeram um branqueamento de capitais. A Argentina é um dos países onde há maior quantidade de divisas depositadas no exterior, isto é, dinheiro retirado do país.

Mais de um PIB está no exterior. O governo fez uma lei que determinava que esse dinheiro poderia ser trazido de volta ao país sem pagar multas. Com a característica, além do mais, de que os seus proprietários não eram obrigados a trazê-lo de volta, bastava que o declarassem. Então, por um prurido de decência, no Congresso foi votado explicitamente que esse benefício não podia ser utilizado por funcionários do governo ou os seus parentes. Mas, uma semana depois, Macri modificou essa lei, revertendo a proibição.

Esse dinheiro que entra – o que realmente entra – começa imediatamente a fugir de novo, porque entra em funcionamento a “bicicleta financeira”: entram dólares; compram pesos; põem-nos a render juros. Atualmente, os juros estão a 70% ao ano. Os que compram pesos para investir aí, compram-nos e passado um mês renovam o depósito. Os juros mantêm-se, mas o capital vai aumentando, aumentando, e no final, se contares o ano completo, o capital aumentou mais de 50 ou 70 por cento.

Isto faz com que o crédito real não exista. Ninguém pode pedir um crédito para financiar uma empresa com custos de 70%!

O macrismo tinha espalhado a ilusão de que quando acabasse o governo de Cristina, haveria uma chuva de investimentos externos. Não houve nada!

O mecanismo de fuga funcionou continuamente até o país começar a ficar sem divisas. O macrismo tinha espalhado a ilusão de que quando acabasse o governo de Cristina, haveria uma chuva de investimentos externos. Não houve nada! A situação internacional tornou-se mais difícil, entrou o Brasil em crise, um mercado importante para a exportação de componentes de automóveis. Assim, sobrou apenas a “bicicleta financeira”.

O governo eliminou leis anteriores que tendiam a restringir um pouco o negócio financeiro, exigindo por exemplo que quando viesse um capital para investir, este permanecesse no país pelo menos um ano. Isso também acabou. Assim, se o investidor via que havia certa instabilidade cambial, retirava o dinheiro e esperava que se estabilizasse para trazê-lo de novo.

O governo retirou às empresa exportadoras de cereais, sobretudo de soja, a obrigação, que havia antes, de cumprir um prazo de três, quatro meses depois de vendida a colheita para que entrassem as divisas. Revogaram esse prazo, e assim os exportadores podem deixar indefinidamente as divisas fora. Qualquer exportador, se tem expectativas de que o dólar suba, espera, não traz o dinheiro para o país. E como sempre há essa expectativa, a consequência é que a última colheita está vendida mas o dinheiro não entra.

Quando começaram a esgotar-se as possibilidades de crédito, porque o risco-país subiu quase ao nível de 2001, o governo não teve outro remédio senão chamar o FMI.

Juan Carlos Fernández: E gastaram todo o dinheiro que o FMI lhes entregou: 45 mil milhões de dólares. Gastaram tudo. Não sobra nada.

Aldo Casas: Chegou a tal ponto que na última remessa prevista, de 5 mil milhões, o FMI suspendeu-a e está à espera para ser dada ao próximo governo, porque este vai gastar tudo.

Bairro de lata na Argentina. Foto de Aleposta, licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported
Bairro de lata na Argentina. Foto de Aleposta, licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported

No último ano e meio cresceu aceleradamente o desemprego, passando dos dois dígitos, e cerca de metade da mão-de-obra não tem contratos de trabalho. O último levantamento, feito pela Universidade Católica argentina, que não é uma fonte particularmente crítica nem de esquerda, mostra que o índice de pobreza chegou aos 35,4%, subindo oito pontos percentuais em um ano. Diz também que 25,4% dos lares, 15 milhões de pessoas, não podem pagar uma alimentação básica. Mais de 50% das crianças são atingidas pela pobreza. Uma situação terrível.

Há algum tipo de auxílio ao desemprego?

Aldo Casas: Não. O que há são os planos sociais, muito extensos, mas que entregam valores muito pequenos.

Então o trabalhador que fica desempregado…

Aldo Casas: … Tem direito a uma indemnização, que se gasta muito rapidamente, ainda mais num país com inflação elevada. A única opção que resta é recorrer a um dos planos sociais.

Juan Carlos Fernández: O ataque sobre o nível de vida é total. Os preços de todos os produtos de primeira necessidade subiram acima da inflação. Os laticínios, por exemplo: a Argentina é um grande produtor de laticínios, mas o preço do leite em Portugal é pelo menos 15% mais baixo que na Argentina. Resultado: este ano caiu geometricamente o consumo de leite. O que quer dizer que a maioria das crianças deixou de tomar leite.

A energia passou a ter custos brutais: eletricidade e gás, e também a água. Estes serviços, que sempre na Argentina tiveram um valor muito baixo – durante o governo de Cristina Kirchner eram subsidiados – chegaram no governo Macri a valores insustentáveis, um casal gasta praticamente metade do salário nestes serviços.

Aldo Casas: Em todos estes aspectos, o governo foi muito mais à direita e conseguiu muito mais do que se poderia supor no início.

O governo foi muito mais à direita e conseguiu muito mais do que se poderia supor no início.

Claro que desde que se formou o governo, todos nós, que éramos críticos dizíamos que era um governo rico para os ricos. Aliás, o governo nada fazia para disfarçar, a começar pelos próprios ministros. Quem põem à frente da energia? A um ex-CEO da Shell. À frente do Banco Central? Um ex-funcionário do JP Morgan. E por aí adiante.

Juan Carlos Fernández: São um bando: o núcleo central do macrismo é formado por um grupo de amigos que se conhecem desde a escola secundária, de um colégio muito aristocrático chamado Cardenal Newman, no qual Macri era o patinho feio, porque os amigos tinham uma origem mais oligárquica que ele. O pai de Macri era um mafioso “civilizado”, que fazia negócios com o Estado e ficou muito rico na ditadura de 1976. Ora este bando teve um plano para o seu próprio enriquecimento. Por exemplo: parte dos 45 mil milhões de dólares do FMI foram para obras públicas, mas para gerar negócios para eles.

Por exemplo: eu vivo diante de um hospital público muito grande; nestes anos houve três vezes obras de alterações nas ruas de acesso ao hospital. Mas lá dentro não há máquinas de tomografia e de ecografia.

Aldo Casas: A deterioração do sistema de saúde que, na Argentina, pelo menos à escala latino-americana, tinha um padrão alto, avançou muito. Os médicos e enfermeiros não têm contrato, porque o Estado é um dos maiores fatores do avanço da precariedade. Não é emprego efetivo, fazem contratos precários que renovam a cada ano. No último ano e meio deixaram de renovar os contratos, de tal maneira que há serviços inteiros que deixam de funcionar nos hospitais de ponta.

A única coisa que não conseguiram fazer, do que se tinham proposto, foi modificar qualitativamente a legislação laboral. Tentaram fazê-lo, em finais de 2017, mas houve uma reação muito forte. Então, esse foi o único ponto em que afrouxaram, em troca de que a CGT, e o peronismo no seu conjunto, em todas as suas frações, lhes garantisse chegarem a 2019. E disseram-no assim. A partir desse momento houve uma mudança. Em 2017 houve várias mobilizações muito fortes, algumas escaparam ao controlo da burocracia. Mas depois da última tentativa de fazer passar no Congresso a lei laboral, sem sucesso, chega-se a essa situação: o governo garante-lhes que não vai impor a reforma laboral, e eles garantem que não haja conflitos significativos até às eleições e inclusive o peronismo lança a palavra-de-ordem “Há 2019”. Isto é, vai haver uma solução que é a eleição de 2019 e nós podemos ganhar. Porque houve uma mudança de humor social. Quando Macri ganha as eleições de meio termo, toda a gente dava como certo que ganhava em 2019. Mas quando começa a crise, começa a mudar também o humor social.

Além disso, começa a haver o processo de reunificação do peronismo que estava muito dividido no Congresso e por isso as leis passavam.

Em que ano ocorre isso?

Aldo Casas: Em 2018. Cristina Kirchner volta a estabelecer relações com a estrutura do partido – ela nas últimas eleições tinha se candidatado por fora da sigla oficial do Partido Justicialista, com uma frente própria, chamada Frente para a Vitória. Apresentava-se como parte do peronismo mas, na realidade, organicamente não era. Todos os governadores estavam noutra candidatura, seguiam a orgânica do Partido Justicialista. Ela restabeleceu as relações com eles, forma-se uma Mesa de ação política na qual estão quase todos, reintegra-se a burocracia sindical, com quem ela tivera conflitos.

Porém, todas as sondagens diziam que Cristina ia subindo, mas não era certo que ganhasse na primeira volta. E se houvesse uma segunda volta, ela não era candidata que assegurasse a vitória. Era um zumbido que uma parte da burocracia usava como desculpa para não entrar no processo de reunificação.

Até que Cristina dá uma reviravolta que surpreende todo o mundo e declara que não aceita ser candidata a presidente, propondo que Alerto Fernández seja candidato a presidente e ela a vice-presidente.

De onde vem Alberto Fernández?

Aldo Casas: É professor universitário de Direito. E foi quem montou a frente de Néstor Kirchner antes da sua vitória eleitoral. Formou a equipa de Kirchner e foi uma espécie de primeiro-ministro do primeiro governo de Kirchner e do primeiro governo de Cristina. Até zangar-se com Cristina, a quem criticou os métodos autoritários. Alberto quase apoiou Macri nas eleições anteriores. E era muito crítico do segundo governo de Cristina, crítico frontal. Definia-se claramente como opositor.

Diante da ação do governo, reconheceu que Macri era pior do que todos pensavam e que ganhara devido à divisão dos peronistas, reconheceu os seus erros e Cristina os dela, afirmou que nunca mais iria brigar com Cristina; e atrás de Alberto Fernández entra Sergio Massa, que era outra cisão importante do peronismo mais à direita ainda.

Com este processo, a palavra de ordem “Há 2019” convenceu as pessoas de que não convinha derrubá-lo antes, porque esse era um fator de desestabilização que podia dar pretextos para dividir o peronismo. Com isso conseguiram que esse ano, terrível do ponto de vista social, passasse sem ameaças centrais ao governo. E o peronismo sempre dizendo que é preciso esperar, primeiro até às primárias e agora até o fim do mandato, mesmo tendo Macri perdido as primárias por uma percentagem muito superior à esperada. Macri ficou desautorizado e é certo que vai perder as eleições.

Quem inventou esse sistema das Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO)? É algo realmente inédito.

Aldo Casas: O peronismo, noutro momento, para dividir a oposição… Na verdade, o argumento era que as primárias serviam para cada qual poder aspirar a ser candidato, já que nas primárias os vários postulantes de um mesmo partido podem-se apresentar. Mas Cristina, que venceu as primeiras, as de 2011, apresentou-se com o peronismo unido. Na verdade, aproveitaram uma ideia surgida quando Duhalde era o presidente e o peronismo estava tão dividido que não podia apresentar-se unido, então autorizaram que houvesse três listas do Partido Justicialista.

Juan Carlos Fernández: Para os partidos pequenos é um sistema perverso, porque estabelece um patamar de votos que praticamente marginaliza todas as organizações pequenas, que têm de ter 3% nas primárias para poderem apresentar a candidatura nas eleições “a sério”.

Eu tentei entender quais eram os objetivos das PASO, e encontrei esses dois: filtrar os partidos que podem se candidatar, e outro tornar pública a disputa interna de partidos que tivessem mais do que um candidato. Mas este segundo objetivo este ano não aconteceu.

Juan Carlos Fernández: Nem um! E houve lugares em que se realizaram primárias e em que concorria apenas um candidato. Primárias para quê?

Mas isso acabou por criar essa situação absurda em que há um governo morto, um presidente derrotado, e um presidente eleito, porque venceu as primárias por larga margem, mas que não pode assumir.

Juan Carlos Fernández: Macri, por exemplo, atua como se não tivesse perdido e publica decretos, muda funcionários, na Justiça está a tentar meter juízes ligados a ele… Todos lhe dizem: “não sejas autista! Houve uma coisa que aconteceu”, mas ele não liga. Está a fazer uma campanha de cem comícios.

Aldo Casas: Todos os dias faz um novo anúncio: “Acabou o ajuste. Agora vem o aumento de salários!” É meio ridículo. Aos comícios não vai ninguém. Tiram fotos de cima e veem-se 200 ou 300 pessoas.

Ontem saíram várias sondagens e quase todas afirmam que a diferença entre Alberto Fernández e Macri cresceu desde as prévias até agora. O que significa também que o novo governo vai assumir com uma base no Legislativo mais forte do que supunha antes.

Depois da vitória de Fernández nas PASO, houve uma crise brutal, com a desvalorização do peso e as novas dificuldades para pagar a dívida ao FMI…

Aldo Casas: Não há nenhuma possibilidade de controlar o movimento de divisas se não for com restrições muito fortes à venda e à saída de dólares, o que levaria a conflitos com as empresas multinacionais se em algum momento lhes proibissem as remessas para o exterior.

Juan Carlos Fernández: Há uma coisa que é preciso destacar, para não se ficar com a ideia de que tudo são más notícias. É que o governo nunca conseguiu tirar as mobilizações da rua. E especialmente as mulheres. É uma explosão, realmente algo muito grande, uma mobilização permanente.

Aldo Casas: Este fim de semana vai haver um Encontro, que agora se chama Plurinacional de Mulheres, na cidade de La Plata, que deve ser o maior do mundo de sempre. Calculam em mais de 200 mil as mulheres que irão participar.

Juan: Com os eixos mais diversos em torno aos problemas de género, mas dois mais importantes que são o aborto e a violência de género. O governo tem evitado tocar nesses temas, apesar de que houve uma coisa que fez: aumentou muito a política de repressão. Pôs no governo uma ministra inapresentável, com uma linguagem muito dura, tipo Bolsonaro. “Ninguém vai sair à rua! Não vamos permitir!” E no outro dia tem de calar-se.

Aldo Casas: Nesse sentido, o processo é muito diferente do do Brasil. Há uma parte da base do macrismo que é muito reacionária, mas está na defensiva. E o movimento, apesar de terem conseguido travar mobilizações gerais no último ano, toda agente sabe que tem a força para fazê-lo.

E isso é muito importante, e explica também o desastre eleitoral do governo. Porque se Macri tivesse podido manter a imagem de “eu sou o forte”, os resultados teriam sido diferentes.

Juan Carlos Fernández: A cidade de Buenos Aires todos os dias é atravessada por uma mobilização. Todos os dias. De mil, de dois mil, de dez mil, de 20 mil… Todos os dias. Fundamentalmente dos setores mais humildes de Buenos Aires, de desempregados… E a palavra de ordem é: “Alberto, te tomamos la palabra”!

Aldo Casas: Algo com o “Vejamos o que vais fazer!” E Alberto começou a dizer que a situação vai ser muito difícil para o próximo governo, fez um apelo a que as pessoas não se manifestassem. Mas as pessoas, que são pro Alberto respondem: “Da rua não podemos sair. Não nos peçam isso.”

Agora, Alberto Fernández, Cristina e sua equipa têm claro que o ano à sua frente vai ser tremendo: têm de pagar as dívidas aos privados – o empréstimo ao FMI só terão de começar a pagar dentro de um ano e meio, mais ou menos. Mas o problema é que se pagam minimamente os empréstimos que vão vencendo, é o próprio Fundo que lhes pede que façam um corte e não paguem tudo, porque senão ficam sem possibilidades de pagar a eles, ao FMI. Alberto diz: “vamos pagar tudo – juros e parcelas – a todos, mas não no tempo previsto. Têm de nos dar mais prazo.” E o Fundo diz: “Isso não é realista, tem de haver alguma redução.”

Quer dizer: o FMI diz para reduzirem a dívida e eles não querem? Porque isso de apenas estenderem o prazo é uma loucura...

Sim, de facto já há uma situação de default, não há nenhuma possibilidade de conseguir créditos novos.

A partir daí, não está claro que medidas o novo governo vai adotar. Está claro que vai evitar medidas de ajustamento fortes, já anunciaram que vão convocar um grande acordo nacional, uma espécie de pacto social, que implicaria que o movimento operário aceitasse uma recomposição salarial que não recupere tudo o que foi perdido, e um compromisso da parte empresarial de não transferir aos preços os aumentos salariais. Mas nenhuma das duas partes tem condições de assegurar que isso vai ser cumprido. Nem o movimento operário pode assegurar que as pessoas aceitem não recuperar o que foi perdido nos últimos anos, nem o patronato vai aceitar não transferir os aumentos para os preços.

Na equipa mais restrita de Fernández, há matizes bastante demarcados, gente que tem boas relações com os Estados Unidos e deu declarações frontais contra a Venezuela, e Alberto Fernández teve que intervir rapidamente para dizer que “não podemos acompanhar as posições do Grupo de Lima.” Na verdade, o que estão a discutir é que grau de acordo vão manter com Trump. Quanto ao grupo de Cristina, está a trabalhar com muito baixo perfil, ela aceitou colocar-se num plano em que deixa todas as decisões ao presidente. Ela faz declarações gerais, difunde os seus livros, e tem um ponto de apoio no futuro governador da Província de Buenos Aires, Axel Kicillof, um economista keynesiano de esquerda que já foi ministro de Economia do governo de Cristina.

Como ficam as relações de forças no campo internacional? Com a derrota de Macri, Bolsonaro fica enfraquecido?

Creio que sim. Há uma mudança significativa porque a aposta de Fernández é fazer um acordo com o México, conter o Uruguai dentro desse acordo se ganhar a Frente Ampla, e com isso vai ser uma alternativa a um Grupo de Lima muito atingido pela crise do Peru e agora a do Equador. E suspeito que vai haver uma tendência a estreitar um pouco mais os laços com a China.

A vitória de Alberto Fernández como mínimo trava o realinhamento que impulsionou Trump no continente com o Grupo de Lima, isso é claro. Sem a Argentina fica muito difícil, e Bolsonaro não tem condições de ser uma referência para todo o continente. Até porque se alinhou muito abertamente com Macri, dizendo que o regresso de Cristina seria desastroso, coisa que normalmente um presidente não faz.

Internamente eu não diria que é uma viragem à esquerda mas há sim uma mudança de relação de forças sociais. Uma vitória de Macri teria sido um fator de desmoralização tremendo. Agora, é verdade que uma vitória da Frente para Todos pode dar autoridade política para pedir paciência às pessoas. Mas paciência não é derrotá-los. Há uma diferença qualitativa.

É provável que o governo consiga manter as coisas e até faça passar alguma medida antipopular. Por exemplo, o projeto das megaminas é claramente alheio aos interesses nacionais. Também vai haver um reforço do modelo agroexportador baseado na soja. Mas do ponto de vista das pessoas, elas entram nesta nova etapa com uma sensação de vitória, de que afastaram um dos governos mais reacionários de sempre.

E queria ainda chamar a atenção para um outro elemento que já não depende de ninguém, o movimento feminista, que tem uma dinâmica própria e é um movimento de massas muito poderoso.

Herramienta, revista de debate e crítica marxista, é uma publicação aberta a contribuições de autores marxistas e do pensamento científico de distintas disciplinas em geral. O seu objetivo é fundamental é difundir trabalhos e debates de atualidade sobre temas políticos, sociais e económicos.

(...)

Neste dossier:

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