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Cabral foi um revolucionário cabo-verdiano que teve um papel fulcral na fundação do PAIGC, juntamente com outros fóruns e instituições dedicados ao derrube do colonialismo português na Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e Moçambique. Apesar de ter sido assassinado antes da breve unificação da Guiné e de Cabo Verde se ter concretizado, as suas ideias continuam a ressoar com relevância e potência nos dias de hoje.
Resistência económica, cultural, política e armada são temas explorados na maioria dos ensaios e discursos de Cabral. Todos esses tipos de resistência giram em torno de um eixo central: a questão da terra. Cabral sabia que as pessoas não lutam apenas por ideias, é a resolução das contradições e lutas imediatas nas suas vidas que as impulsiona para a revolução. Num discurso proferido em Londres, alguém perguntou a Cabral se o PAIGC é um partido marxista-leninista. A resposta de Cabral foi reveladora do tipo de revolucionário que era:
“As pessoas aqui estão muito preocupadas com as questões: «És marxista ou não marxista? És um marxista-leninista?» Perguntem-me, por favor, se estamos a fazer bom trabalho no terreno. Estamos realmente a libertar o nosso povo, os seres humanos do nosso país, de todas as formas de opressão? Perguntem-me simplesmente isto e tirem as vossas próprias conclusões”.
Essa brilhante resposta corta o dogmatismo ideológico e o fanatismo, mas Cabral também sabia que a teoria é uma arma nas mãos dos oprimidos. Numa entrevista a um jornalista português, Cabral apresenta uma análise clara das razões pelas quais o seu povo está determinado a resistir. Relaciona a luta dos povos da Guiné e Cabo Verde com a revolução em Cuba, Vietname e Palestina, destacando também as claras distinções nas estratégias e táticas de luta em cada local. Muitas das respostas dadas por Cabral nessa entrevista são relevantes ainda hoje.
Quando questionado sobre a Palestina, Cabral fez uma análise mais lúcida do que a maioria dos analistas contemporâneos, apresentando a Palestina como um elemento-chave da luta árabe, em vez de construir a Palestina como um Estado-nação em black-box, separado da região. "Queremos que os povos árabes procurem a liberdade do povo da Palestina, libertem a nação árabe da perturbação e dominação imperialista: 'Israel'”. Quando questionado sobre a teoria da luta de guerrilha de Che Guevara e a sua aplicabilidade à luta guineense, Cabral elucidou ainda mais a importância de casar teoria e prática.
Cabral aponta para a importância de entender as lutas armadas como uma faceta da libertação nacional, ao mesmo tempo que defende que o povo guineense deve partir das suas próprias condições como ponto de partida. O povo da Guiné não podia copiar todas as táticas e estratégias do heróico povo cubano ou vietnamita, mas podia ver essas lutas como terrenos diferentes na mesma luta. Desta forma, transparece a beleza da declaração de Cabral sobre a luta guineense: "O nosso povo é a nossa montanha". Enquanto o Vietname tinha uma densa cobertura de selva, e os cubanos lutavam nas montanhas de Sierra Maestra, as condições na Guiné eram tais que o povo se tornou o substituto do meio ambiente, que não era favorável à luta armada clandestina, de acordo com o conhecimento acumulado dos movimentos de guerrilha. Por isso, segundo Cabral, a Guerra da Independência da Guiné foi uma luta "centrífuga". Começaram nas grandes cidades e depois saíram em direção ao campo. Trata-se de uma inversão das lutas chinesas, vietnamitas e cubanas, onde as forças guerrilheiras começaram no campo e se deslocaram em direção à cidade. Cabral e o PAIGC eram mestres estrategistas nesse sentido, entendendo que não podiam copiar cegamente os planos de outros povos, mas antes podiam ver essas pessoas como uma inspiração enquanto construíam uma revolução exclusivamente guineense.
“Esta independência no nosso pensamento e na nossa ação é relativa. É relativa porque no nosso pensamento somos influenciados pelo pensamento dos outros. Não somos os primeiros a travar uma luta armada de libertação nacional, ou uma revolução. Não fomos nós que inventámos a guerrilha, fomos nós que a inventámos na nossa terra... Temos de ter consciência de que nenhuma luta pode ser travada sem uma aliança, sem aliados.”
A invenção da guerrilha na própria terra, com meios e fins únicos, contém o elemento final e crítico da luta: a cultura. Durante a revolução guineense, muitas pessoas acreditavam que abraçar a própria cultura em contraste com a cultura colonial significava voltar acriticamente às práticas culturais pré-coloniais. Cabral destacou o fracasso desta estratégia e instou os povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde a forjarem uma nova cultura revolucionária através da luta armada, económica e política. Nessa avaliação, Cabral não estava sozinho; o falecido Ghassan Kanafani não era apenas o porta-voz da FPLP, editava a sua revista e produzia ele próprio obras culturais. A revolução na Palestina – à semelhança da liderada pelo PAIGC na Guiné – cultivou um povo com uma mentalidade forte e resistente e uma vontade revolucionária que mantém os valores culturais e os concretiza através da luta.
Símbolos culturais que giram em torno da terra animam as lutas de hoje. Na Palestina, a melancia, a oliveira, o koufiyyeh e vários símbolos tatreez (bordados) de cada localidade ligam o povo à terra e concretizam a luta nas condições subjetivas da Palestina. Esta é a visão que Cabral tinha da luta na África, Ásia e América Latina; Só através de uma compreensão profunda das próprias condições e do estudo de outras experiências revolucionárias é que um movimento pode avançar para a libertação.
Tudo isto está também intimamente relacionado com as lutas económicas contra o colonialismo e o imperialismo. Cabral defendeu a autossuficiência agrícola, a redistribuição da terra e outras formas económicas de desligamento do sistema mundial capitalista. Isso também imprime a importância de traçar um caminho independente para a revolução naqueles de nós que vivem à sombra de Cabral e de todos os mártires que vieram antes de nós. A primeira tarefa de libertação nacional, segundo Cabral, é a recuperação dos meios de produção, usurpados por forças coloniais externas. A partir daí, as forças revolucionárias podem tirar as lições aprendidas sobre a cultura e a questão da terra e ir construindo uma nova sociedade, livre da dominação colonial. Embora Cabral já não esteja entre nós, as forças da revolução estão vivas na Palestina e no Sahel, e iluminam o caminho da libertação.
Texto de Hanna Eid publicado em Al Mayadeen. Traduzido e adaptado para o Esquerda.net por Daniel Moura Borges.