O “Ágora de Bruxelas” debatendo “um mundo de vergonha”

A perseguição aos desempregados e a situação na Grécia foram os primeiros temas de debate promovidos no “Ágora Bruxelas”, espaço de “Indignados” de todo o mundo congregados esta semana na capital belga. Reportagem de José Goulão, em Bruxelas.

16 de outubro 2011 - 2:29
PARTILHAR

O choque com o aparelho repressivo bruxelense já lá vai, ficou arquivado nas peripécias do fim de semana e nas memórias dos que dele foram vítimas – os activistas decidiram passar por cima e dedicar-se ao essencial do que os trouxe a Bruxelas em vez de se tornarem vítimas de armadilhas já bem identificadas.

Os trabalhos de debate e divulgação dos “Indignados” de todo o mundo que continuam a chegar a Bruxelas para uma semana de activismo que culminará numa grande manifestação no sábado, já estão em pleno curso. Os participantes optaram por “não continuar a responder ao autoritarismo gratuito e provocatório das autoridades belgas” ao negarem o Parque Elisabeth para acamparmos, explica Margrit, uma activista alemã chegada de Dusseldorf.

Os “Indignados” aceitaram o edifício desocupado na Universidade Católica de Bruxelas que lhes foi cedido pelas autoridades e decidiriam que não perderiam mais tempo e energias a “fugir da polícia”, diz Margrit. “Não foi para isso que aqui viemos”, sublinha, Hans, holandês de Alkmaar, “isso é o que eles queriam que fizéssemos para depois nos acusarem de sermos irresponsáveis e inconsequentes; isso é tudo o que não queremos ser”.

Durante as primeiras horas do “Ágora Bruxelas”, depois de as autoridades da cidade terem voltado atrás com a autorização inicial de acampamento no Parque Elisabeth, não respondendo sequer a uma interpelação apresentada por dezenas de deputados europeus, grupos de “Indignados” insistiram na luta pelo espaço, o que foi reprimido violentamente pela polícia. No sábado à noite foram detidos 48 activistas, a maioria espanhóis, alguns arrastados violentamente para o autocarro da polícia, e que passaram as 12 horas seguintes nos calabouços partilhando entre todos a única garrafa de água que lhes foi facultada.

Aceite depois o espaço no edifício universitário, os primeiros trabalhos foram o estabelecimento de formas organizativas da sua gestão e de realinhamento dos programas de debates, a realizar tanto no Parque Elisabeth – onde apenas estão vedados o acampamento e a pernoita - como no próprio edifício.

E, pela força das circunstâncias, como disse Serenella, italiana de Bari, a repressão policial tornou-se automaticamente um dos primeiros temas de debate. “As polícias apenas são cívicas na designação”, disse Serenella fazendo uma espécie de apanhado das intervenções que chamaram a sua atenção. “Na teoria têm como missão defender e apoiar o cidadão; na prática transformaram-se em instrumentos de um poder que tende a servir-se cada vez mais delas, e de forma cada vez mais violenta quanto maior é a crise e a necessidade de exigir sacrifícios às pessoas”. “Éramos tontos se não aprendêssemos como a maneira como a polícia nos tratou em Espanha e agora aqui voltássemos a cair nos mesmos engodos; as polícias estudam todas pelas mesmos manuais”, acrescentou Sofia, aragonesa de Saragoça.

Tomás ouvia a conversa. É português, porém não veio de Portugal, mas sim de Tours, França. “Vejam o caso da Grécia”, interrompeu. “A polícia é um aparelho ao serviço da troika contra os cidadãos gregos mais desamparados; e sei que em Portugal andam no ar coisas estranhas desde que o actual primeiro ministro ameaçou que não vai aceitar ‘motins’, o que nos leva a pensar que, não havendo entre nós histórias de violência, talvez esses ‘motins’ até possam estar a ser ‘fabricados’ em algum lado, mas não de certeza entre as pessoas que resistem manifestando-se”.

A Grécia foi outro dos debates das primeiras horas do “Ágora”. A tónica das intervenções esteve muito centrada no papel desempenhado pelos bancos durante os últimos anos para “moldarem” o sistema político aos seus interesses, de modo a que o seu papel seja hoje considerado imprescindível. “Os bancos podem tudo e nós somos obrigados a fazer e aceitar tudo para que eles não vão à falência mesmo quando são mal geridos”, disse Francisco, andaluz de Granada.

O desemprego, olhado sob a perspectiva das discriminações sociais que provoca, foi também um tema dos debates iniciais e continuará a sê-lo porque é um dos temas fundamentais desta semana de activismo. “O desempregado não luta apenas com a falta dos meios de sobrevivência e com as pressões políticas para que lhe sejam retirados os últimos direitos que lhes restam”, declarou Iannis, vindo da Grécia, de Tessalónica. “Nós, desempregados, somos uma espécie de párias, não temos acesso à maioria dos serviços que o Estado ainda presta, somos encarados como responsáveis pela crise porque ocupámos postos de trabalho que, afinal, como se ouve agora por todo o lado, não deviam ter existido e ainda por cima ouvimos esses senhores que só pensam em austeridade acusar-nos de sermos preguiçosos, de não querermos trabalhar”.

Iannis é professor, foi arrastado para o desemprego pela onda de “racionalização” do Estado grego sob as ordens da troika, e tenta dar explicações para sobreviver. Ainda não recebeu qualquer indemnização ou subsídio, não imagina sequer o que lhe vai suceder. “Sabes o que acontece?”, pergunta a todos em volta, mas sobretudo a ele próprio, “a maior parte das lições que dou são gratuitas porque as famílias não podem pagar mas também não querem que as suas crianças fiquem sujeitas à qualidade cada vez pior do ensino; não tenho coragem para lhes pedir dinheiro...”

No Parque Elisabeth começou a chover e Bruxelas não goza por estes dias das altas temperaturas que o “Verão Indiano” ainda permite noutras paragens. Quase sem se dar por isso, aquela mole de gente, algumas centenas de pessoas, começa a deslocar-se para a Universidade, ali perto, procurando abrigo, mas sem se apressar. É bastante mais intenso o ritmo das conversas num linguajar babélico assente num pilar comum às vezes vagamente inglês.

Apesar disso, o entendimento não é difícil mesmo sendo eles chegados de todos os quadrantes da Europa, das Américas do Norte e do Sul, das partes de África, de nações árabes com ou sem “primaveras” ou com primaveras de faz de conta. A verdade é que falam todos a mesma língua, a dos que se têm capacidade para se indignar perante o Estado de um mundo que Serenella, italiana de Bari, baptizou como “mundo da vergonha”.


Artigo publicado no portal do Bloco no Parlamento Europeu

Termos relacionados: 15 de Outubro