Hayek, Pinochet e os social-liberais entram num bar…

“Pessoalmente prefiro um ditador liberal a um governo democrático a quem falte liberalismo”. As palavras são de Hayek numa entrevista em 1981 ao diário chileno El Mercurio, durante a sua segunda visita ao país governado por Pinochet. A afirmação não foi um lapso, um mal-entendido ou um problema de tradução. É doutrina do pensamento liberal: se o mercado não se pode impor por meios pacíficos, então que seja com recurso à violência e ao autoritarismo. Porque a liberdade dos liberais é a liberdade do capital e não a dos povos.

Ao autor de O Caminho da Servidão não afligiam os atentados aos direitos humanos no Chile, as prisões, torturas e assassinatos políticos. Ele chegou mesmo a escrever que “o regime de Pinochet era injustamente sujeito a uma campanha de propaganda negativa” e aconselhou o Frankfurter Allgemeine Zeitung a pedir desculpa ao Governo chileno depois de este jornal ter publicado uma caricatura do ditador.

Claro que há uma explicação para o enamoramento: depois do golpe de Estado que levou à morte de Allende, o Chile tornou-se no laboratório mundial do liberalismo. O fanatismo liberal descobriu que para impor o seu programa de violência social precisava de fazer uso da violência política e institucional e não se fez rogado. O que interessava era a privatização de vários setores, entre eles a saúde, a redução de despesa pública e a transferência da riqueza do país para o setor privado.

Neste artigo, será sobre a saúde que nos debruçaremos. Primeiro, sobre as medidas do regime Pinochet para esta área e suas consequências; segundo, sobre a forma como medidas social-liberais, ao não desfazerem o modelo de saúde da ditadura, se reduziram a uma tentativa de domesticação do capitalismo, não conseguindo contrariar as desigualdades em saúde.

Desde a década de 20 do século XX que o Chile tinha algum tipo de medidas políticas para garantir acesso à saúde. Começou por um seguro obrigatório destinado a proteger trabalhadores manuais dos riscos de invalidez, velhice e doença, passou depois para um Serviço Nacional de Saúde não universal que, com Allende, se transformou em universal e inteiramente financiado pelo Estado.

A ofensiva liberal de Pinochet contra o Serviço Nacional de Saúde chileno fez-se em duas frentes: primeiro, acabando com a sua estruturação e resposta organizada, e substituindo-a pela municipalização dos cuidados de saúde primários; segundo, criando empresas privadas lucrativas (as Isapre – Instituciones de Salud Previsionales) que funcionavam como intermediárias financeiras entre estabelecimentos de saúde e utentes para a aquisição de planos de saúde.

O modelo de financiamento do sistema de saúde também foi alterado, passando a existir uma contribuição obrigatória equivalente a 7% do salário. O utente, ao pagar estes 7% do seu salário, escolhia se o quer pagar ao sistema público ou a uma das várias instituições privadas. Para além desta contribuição obrigatória as empresas privadas podiam exigir contribuições superiores para planos de saúde premium e no sistema público havia lugar a copagamentos, exceto para quem apresentasse atestado de pobreza.

Com estas alterações, em 15 anos, as fontes de financiamento da saúde no Chile alteraram-se brutalmente. A contribuição estatal passou de 68% em 1974 para 35% em 1989 e a contribuição dos utentes (entre contribuições e copagamentos) passou de 26% para 60%. Se em 1973, a despesa pública com o SNS representava 3,5% do PIB chileno, a ditadura reduziu este valor para 0,85%.

A desigualdade no financiamento também não deixa margem para dúvidas: nos anos finais da ditadura de inspiração liberal, o sistema público de saúde representava menos de 3% do PIB (e mesmo assim maioritariamente financiado pelas contribuições e copagamentos individuais), enquanto o sistema inteiramente privado pesava mais de 3%. Acontece que o sistema privado abrangia pouco mais de 20% da população, enquanto o sistema público servia mais de 70%. Isto quer dizer que, sob o regime de Pinochet, 20% da população (os mais ricos) ficavam com mais de metade dos gastos totais em saúde, enquanto a população pobre (representando quase 80%) ficavam com menos de metade dos recursos de saúde do país.

Como é óbvio, estas medidas de privatização da saúde tiveram enormes impactos:

  1. os cuidados de saúde foram estratificados consoante o rendimento da pessoa: os mais ricos contribuam para as Isapre e compravam os seus planos de saúde premium; os da chamada classe média contribuíam para o sistema público, mas optavam por um regime livre a que estava associado um sistema de copagamentos por ato de saúde; os pobres eram atendidos gratuitamente nos estabelecimentos públicos;
  2. desviou-se dinheiro para um sistema de saúde feito para ricos e impôs-se uma contribuição regressiva aos mais pobres. A ineficiência associada às Isapre levou o Estado a subsidiar o serviço privado de várias formas: em alguns casos deduções fiscais sobre parte das contribuições feitas para este sistema, assunção do pagamento das licenças de maternidade que deveriam ser assumidas pelas Isapre e dos custos dos utentes das Isapre que acabavam por ser atendidos no sistema público. Desta forma, eram os mais pobres da sociedade (que contribuam para o sistema público) que suportavam parte dos cuidados prestados aos mais ricos, arrumados no seu sistema privado.
  3. discriminaram-se as populações pobres e que apresentavam mais risco de saúde, passando as Isapre a escolher para seus clientes os ricos e saudáveis, ou seja, os que representavam lucro e poucas complicações. Exemplo dessa discriminação evidente é o facto de os planos de saúde para mulheres custarem 4 vezes mais do que os dos homens e os planos de saúde para maiores de 60 terem um preço 8 vezes superior ao plano standard. Apenas 1,6% das pessoas pertencentes ao quintil mais pobre da população tinha acesso ao setor privado da saúde, o que compara com 50,5% dos indivíduos do quintil mais rico;
  4. os cuidados de saúde primários colapsaram (os tais que tinham sido municipalizados), o que causou uma enorme desigualdade entre regiões mais ricas e mais pobres. Os municípios não conseguiam garantir os serviços de saúde à população, os profissionais que tinham sido recolocados como funcionários do setor privado perderam salário e carreira e a vigilância e o tratamento de dados epidemiológicos sofreram com a desarticulação da resposta em saúde. Resultado: as zonas rurais e mais pobres passaram a ter menos acesso à saúde e as suas populações começaram a apresentar piores indicadores.

A desigualdade económica e social traduziu-se em desigualdade na saúde. Com Pinochet e a sua equipa de Chicago boys a pobreza disparou no Chile, dos 12% registados no Governo de Allende passou para 45% sob os auspícios do liberalismo autoritário. Com um sistema de saúde segmentado e de contribuições regressivas, a desigualdade, em vez de ser mitigada, foi ainda aprofundada.

Apesar de todas estas consequências, os governos democráticos que sucederam a Pinochet não alteraram a estrutura do sistema de saúde chileno. Com o objetivo de manter o liberalismo económico, ainda que com maior preocupação social, os vários Governos desde 1990 têm-se limitado a tentar disciplinar o setor privado e a aumentar o financiamento do setor público. É uma melhoria em relação ao que existia, sem dúvida, mas não representou uma mudança estrutural e, por isso mesmo, as desigualdades persistem, seja na sociedade em geral, seja na saúde.

Social-liberalismo deixa a recuperação a meio

A abordagem social-liberal aumentou o financiamento público para a saúde e resgatou os cuidados de saúde primários da situação em que se encontravam, tornou alguns cuidados de saúde gratuitos (ou seja, sem copagamentos) e, em 2005, publicou o Regime de Garantias em Saúde que tinha como objetivo regular o setor privado. Este regime impôs uma carteira mínima de serviços que as instituições privadas tinham que garantir a quem para elas descontasse e tentou limitar a seleção de beneficiários que estas instituições faziam.

No entanto, tudo o resto se manteve: um sistema público que não é universal, uma segmentação da sociedade em sistema privado e sistema público de saúde, um financiamento da saúde muito alicerçado em contribuições e copagamentos, um setor privado que por muito que se tente regular é predatório e rentista.

Consequências: já no novo milénio, o número potencial de anos de vida perdidos continuavam a ser 35% mais elevados no quintil mais pobre comparativamente com o quintil mais rico da população; a tuberculose era muito mais incidente nos municípios mais pobres do que nos municípios mais ricos; a mortalidade no decil mais pobre é de 6 em 1.000 enquanto que no decil mais rico é de 4,8 em 1000; a mortalidade infantil era de 42,2 por 1000 nascimentos nos municípios mais pobres, ao passo que nos municípios mais ricos era de 2,62/1000; o acesso a cirurgias e a testes laboratoriais está correlacionado com o rendimento do utente; o acesso a consultas de especialidade era três vezes maior no decil mais rico da sociedade do que no decil mais pobre; já o recurso à urgência é duas vezes mais frequente entre os mais pobres. Estudos recentes de saúde público mostram que o estado de saúde da população chilena depende muito do rendimento familiar, do sexo do utente e da zona e região de residência.

Um aparente paradoxo nos resultados

Apesar de tudo isto, em termos gerais, o Chile apresenta relativamente bons resultados em saúde, principalmente se tivermos em conta o seu contexto regional.

Isso é justificado pelo facto de este país ter um histórico no que toca à disponibilização de cuidados de saúde e de, muito antes da ditadura, ter desenvolvido políticas em torno dos cuidados materno-infantis e dos cuidados de saúde primários. Nem mesmo o fanatismo liberal, por muito que tentasse, conseguiu matar a resposta pública que continuou a ser a dominante na sociedade, uma vez que a esmagadora maioria da população não tinha dinheiro para aceder ao sistema privado paralelo. A minoria que acede ao setor privado é uma população selecionada e sem grandes riscos socioeconómicos ou de saúde; a esmagadora maioria da população continuou e continua a ser acompanhada pelo sistema público. Foi esse que, apesar da longa noite da ditadura liberal, conseguiu garantir que os 45% da população que vivia na pobreza não fosse inteiramente condenada à doença e à morte.

Seria de esperar que sendo tudo isto tão claro, os governos democráticos pós-Pinochet tivessem acabado com o modelo de saúde construído pelo ditador, mas não. A tentativa de casar liberalismo económico com alguns direitos sociais, típica dos social-liberais, apenas permite gerir a desigualdade quando o que é preciso é acabar com ela.

No Chile, a ‘reforma’ liberal é cara e ineficiente. Custa 7% do salário aos utentes, canaliza 50% dos recursos para 20% da população e os ganhos em saúde são alcançados pela resposta pública e não pela privada. Lá, como aqui, o caminho para a igualdade é um Serviço nacional de Saúde universal e público. Enterre-se de vez o Pinochet.


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