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Como a CIA hipotecou as hipóteses de erradicar a Poliomielite
No final de abril de 2012, o médico paquistanês Shakil Afridi foi condenado a 33 anos de prisão, pelo seu envolvimento no processo que levou à captura e morte de Osama Bin Laden. Por volta da mesma altura, a milhares de quilómetros de distância a oeste, a Organização Mundial de Saúde em Genebra, declarava a emergência no combate à poliomielite.
À primeira vista, os eventos não se encontram relacionados, mas têm mais em comum do que aquilo que aparentam a uma primeira observação. Trata-se de um caso que expõe os profundos vasos comunicantes entre política internacional e saúde. A forma como se influenciam mutuamente, é sobejamente conhecida. Neste caso, contribuiu para colocar em causa um objetivo de saúde mundial há muito perseguido: a erradicação da poliomielite.
O papel de Shakil, passava por colaborar com a agência norte-americana, para tentar perceber se uma determinada família que vivia de forma isolada em Abbottabad, correspondia à família de Bin Laden. Organizou um programa falso de vacinação contra a hepatite B. Centenas de crianças paquistanesas foram falsamente vacinadas, as agulhas foram guardadas, sendo desta forma recolhidas amostras de ADN. Posteriormente, este ADN seria utilizado para determinar que crianças pertenciam ao clã Bin Laden.
Infringindo todos os regulamentos éticos, traduzindo-se num ato que seria inadmissível para crianças americanas, o programa foi utilizado em larga escala em crianças paquistanesas e afegãs. De forma a ultrapassar o filtro das autoridades locais de saúde, o médico alegou que tinha reunido doações internacionais para o seu programa. Doações que existiam sim, mas provenientes da CIA. O mais irónico é que este falso programa de vacinação pouco contribuiu para a captura de Bin Laden.
O que este programa conseguiu, foi alavancar a suspeição das comunidades locais em relação à ajuda ocidental, especificamente, sobre vacinação. De facto, até hoje, os dois únicos países com circulação endémica do vírus selvagem da poliomielite, são o Paquistão e Afeganistão. Em algumas regiões, equipas de saúde continuam a ser expulsas com violência, sendo negada às crianças uma vida sem o risco deste vírus.
É uma doença que deixa marcas visíveis na população. Uma das últimas grandes epidemias ocorreu em 1952 nos EUA, tendo sido relatados 58 mil casos, com 3.145 óbitos e 21.269 casos de paralisia definitiva. Em Portugal, o último caso de doença e paralisia por vírus selvagem, data de 1986. No período de 1954 a 1965, foram registados 2.945 casos com paralisia e 345 mortes. Foi a campanha de vacinação contra a poliomielite, e o seu sucesso instantâneo, que lançou as bases para o futuro programa nacional de vacinação.
Obama, em 2014, perante a pressão da opinião pública, garantiu que os EUA não voltariam a utilizar um programa de vacinação falso para a prossecução de objetivos de política externa. De facto, a lição por várias vezes aprendida, diz-nos que a mistura entre saúde e objetivos geoestratégicos é deletéria para a saúde global.
A diplomacia da saúde global rege-se por princípios da solidariedade, não securitários. Como assistimos durante esta pandemia, só estaremos bem quando todos estiverem bem. É importante o envolvimento da saúde na política externa, na elaboração de um tratado pandémico por exemplo, ou a visão da saúde como soft power, bem apropriado ao caso português. Encarar a saúde como uma arma do aparelho securitário ou repressivo é um erro, que apenas prejudica e coloca em causa tudo o que foi alcançado.
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