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Comentário ao livro: "O sistema de saúde no Estado Novo de Salazar"

O livro de Andreia da Silva Almeida foi o vencedor do Prémio António Arnaut e é uma investigação histórica sobre a criação do Ministério da Saúde e dos debates sobre o sistema de saúde que atravessaram grande parte do período da ditadura. Por Bruno Maia.

A política de saúde do Estado Novo era muito clara e está expressa em inúmera documentação histórica: o Estado não deveria interferir na prestação de cuidados de saúde à população, esse é o papel dos privados. Ao Estado estava reservado o papel de “apoiar” essa prestação privada, sempre que necessário.

“A função do Estado e das autarquias na prestação da assistência é, normalmente, supletiva das iniciativas particulares” - Estatuto da Assistência Social, 1944
 
Foi o próprio Salazar que declarou em 1922, quando era provedor da Misericórdia de Coimbra: “Deus nos livre que o Estado pretendesse substituir-se às velhas instituições portuguesas, fazendo por si a assistência. (...) A oficialização da caridade seria a sua destruição (...) sob pena de se transformar numa obrigação legal que perigosamente eleva a miséria à categoria de uma fonte de direitos sobre a riqueza comum”. Para Salazar a saúde deveria ficar nas mãos dos privados dada a “ineficácia” da gestão pública “pela incomparável carestia da máquina burocrática” e na superioridade da gestão privada. Em 1944, era publicado o “Estatuto da Assistência Social”, também ele muito explícito sobre o sistema de saúde da ditadura: “A função do Estado e das autarquias na prestação da assistência é, normalmente, supletiva das iniciativas particulares”.

Antes do Serviço Nacional de Saúde, Portugal tinha um «serviço nacional de caridade»: os mais ricos pagavam os seus cuidados em casas de saúde privadas e quartos particulares dos hospitais públicos, as classes médias e baixas que podiam, pagavam parte dos custos dos cuidados prestados e os mais pobres e os sem-abrigo tinham direito a assistência gratuita mediante a obtenção de um atestado municipal de indigência. Mais de metade da população portuguesa não tinha acesso a cuidados de saúde, por carência económica ou distanciamento geográfico. No ano de 1975, em cada 1000 nascimentos morriam 38 recém-nascidos. 90% dos recursos humanos localizavam-se no litoral e 85% dos médicos especialistas estavam localizados apenas nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra (o SNS seria criado 3 anos depois).

O país era olhado, internacionalmente, como pobre e atrasado, com indicadores de saúde no fundo da tabela e, frequentemente havia “pacotes de ajuda” internacional, nomeadamente dos norte-americanos, que se dirigiam a Portugal e aos seus pobres.

Mas esta opção do Estado Novo pela “saúde entregue aos privados e os pobres privados de saúde” não se desenvolveu sem oposição, inclusivamente de setores do interior da própria estrutura da ditadura. Na década de 60, aprovava-se o novo Estatuto da Saúde e Assistência e a Câmara Corporativa, consultada sobre o diploma, numa inflexão à política da época, afirmava que cabia ao Estado “a iniciativa da criação dos serviços de saúde e assistência que se tornarem indispensáveis”. Só que a deliberação deste órgão não teve eco na ideologia social do Estado Novo e o texto final do novo Estatuto acabaria por vincar novamente que o papel do Estado era o de “uma ação meramente supletiva em relação às iniciativas e instituições particulares, que deverá favorecer”.

Também a partir da década de 60, os médicos entram em cena. Em 1961, a Ordem dos Médicos publica o “Relatório das Carreiras Médicas”, que salientava a necessidade de criar carreiras médicas e organizar os serviços de saúde. Miller Guerra e Mário Mendes foram os grandes impulsionadores deste relatório que acabaria que criar bases de pensamento para a organização de um serviço de saúde universal.

Os paralelos argumentativos entre o período do Estado Novo, que nos conta o livro de Andreia da Silva Almeida, e os tempos atuais são esclarecedores. Vemos hoje os liberais e a direita defenderem a medicina privada com unhas e dentes, utilizando os mesmos argumentos de Salazar sobre a “ineficiência” do público e a “intromissão do Estado”. Só que entre Salazar e a atualidade passaram 40 anos de SNS, e a evolução na qualidade de vida e nos indicadores de saúde do país são astronómicos. Regressar ao país miserável da ditadura parece ser o mote desta nova direita!

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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