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Washington-Lisboa, escala em São Miguel

Donald Trump teve um resultado impressionante. Foi o presidente do abandono da Organização Mundial de Saúde em plena catástrofe pandémica, da retirada dos acordos de Paris, do descontrolo da violência racista, dos escândalos de espionagem. E fez a sua campanha com as mentiras compulsivas e a agressividade de sempre. Repugnante para a maioria, não deixou de conquistar mais seis milhões de votos que há quatro anos.
Há muito que Trump tinha planeado perturbar a contagem dos votos com vista à impugnação da sua provável derrota. Ele só poderia ser afastado com batota. Os seus apoiantes não levaram o plano B muito longe: não houve focos de violência relevantes e o resultado parece consumado. Mas é marcante que o tal “homem mais poderoso do mundo”, vencido, saia apelando aos seus apoiantes para combaterem uma fraude que nunca existiu. Por cá, alguns dirigentes do Chega, inconformados com a desgraça do ídolo, apressaram-se a recitar a cantilena. Esta direita usa a democracia e o voto, mas despreza a vontade maioritária.
Tal como se enganou quem previu, em 2016, que o exercício do poder acabaria por levar Trump à normalidade, também se enganará quem pensar, agora, que este foi um sonho mau que terminou. Nos Estados Unidos, a crise social, o desemprego e o abandono dos mais pobres permanecem fontes de ressentimento de que o nacionalismo retrógrado se alimenta. Para as estancar, será preciso evitar o regresso, com Joe Biden, às velhas políticas do Partido Democrata que deixaram tantos norte-americanos disponíveis para o vandalismo político do milionário.
Sem respostas públicas pelo emprego (ligadas à transição energética num país viciado em petróleo), pela Saúde (para obterem cuidados de saúde, privados, as classes trabalhadoras vivem sob a ameaça do endividamento) e pelos direitos humanos (enfrentando o poderoso lóbi das armas e terminando a impunidade dos abusos policiais sobre as minorias), sem essas mudanças verdadeiras, as forças que Trump reuniu nestes anos depressa regressarão à ofensiva. Tais mudanças só serão possíveis com um novo protagonismo dos movimentos populares que tanto contribuíram para derrotar Trump, do movimento #BlackLivesMatter às mobilizações pelo clima e por justiça social.
Durante quatro anos, a Casa Branca foi o Vaticano da extrema-direita mundial, dos governos israelita, brasileiro ou indiano até aos golpistas da Bolívia e aos racistas ascendentes na Europa. Nas suas diferenças, todos usam a cultura e os métodos políticos de Trump para acantonar os partidos conservadores tradicionais, captar partes deles e conquistar a representação da direita.
Até à recente eleição de André Ventura, este processo de afirmação do populismo xenófobo não tinha expressão relevante entre nós. Este antigo afilhado político de Passos Coelho conseguiu amalgamar neo-fascistas, extremistas religiosos e ex-militantes do CDS e do PSD, tudo em torno de um programa de choque frontal com a Constituição democrática: discurso de ódio, ataque ao Estado social (privatização total da Saúde e da educação) e aos direitos elementares (pena de morte, castração química). A esse país abjeto, o Chega chama pomposamente “Quarta República”.
Ao celebrar um acordo formal com o Chega para chegar ao governo nos Açores, Rui Rio prova que é um perigo para o país, para o PSD e para si próprio. Quando se abre a porta ao extremismo anti-democrático e racista, uma das vítimas costuma ser o porteiro.
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