Está aqui

Às voltas com Andreas Malm

Pela influência que têm na luta mais importante dos nossos tempos, a luta climática, as ideias do académico sueco Andreas Malm merecem uma reflexão séria e uma leitura crítica. Até mesmo uma resposta polémica. Nesta luta, como em todas, não há profetas intocáveis.

Após um intervalo provocado pela pandemia e, provavelmente, pela invasão da Ucrânia, a luta climática reganha protagonismo. No Reino Unido, França e Alemanha assistimos a grandes mobilizações de milhares ou dezenas de milhares de pessoas nos últimos meses. Em Portugal ainda não vimos o regresso de verdadeiras mobilizações de massas, mas, desde as Ocupas pelo Fim ao Fóssil e outras ações de desobediência civil, existe uma efervescência crescente no ativismo climático.

Talvez por isso, a jornalista Aline Flor, do jornal Público entrevistou há dias o académico e ativista sueco Andreas Malm. Marxista, professor e investigador de ecologia humana, as ideias de Malm inspiram hoje as franjas mais combativas do movimento. Para o autor destas linhas, por exemplo, a leitura de Fossil Capital ou do ensaio Revolutionary Strategy in a Warm World foram muito importantes. Mas, mais recentemente, foi a publicação de How to Blow Up a Pipeline? (Como explodir com um oleoduto?, tradução minha) que mais influenciou ativistas de todo o mundo — inclusive cá, onde, desgraçadamente, os livros de Malm permanecem inéditos. Ações recentes, desde «bloqueios» de infraestruturas à vaga de esvaziamento de pneus de SUV, ainda que muito longe da «sabotagem» defendida por Malm, são, em muito, baseadas na sua doutrina. Pela influência que têm na luta mais importante dos nossos tempos, as ideias do académico sueco merecem uma reflexão séria e uma leitura crítica. Até mesmo uma resposta polémica. Nesta luta, como em todas, não há profetas intocáveis.

As linhas que se seguem partem da entrevista dada ao Público para propor algumas bases para debate. Escolho umas poucas declarações de Andreas Malm, retiradas da entrevista ao Público, para lançar algumas «achas para a fogueira» do debate climático. Sei bem que esta entrevista e as frases escolhidas não refletem todo o pensamento de Malm, mais matizado e complexo. Mas são exemplificativas de uma forma de pensar que ganhou espaço no movimento climático. O eventual simplismo que possa advir das notas abaixo é certamente desculpado por se tratar de um exercício exploratório — ou até mesmo provocatório. Vejamos então o que nos diz o ativista sueco.

Frase 1: «A capacidade de as pessoas não verem o que está à sua frente é bastante impressionante»

Para um militante de esquerda, a responsabilização das «pessoas», da sua consciência atrasada ou falta de visão política, como justificação para uma qualquer linha de ação, deve logo ativar um alerta. É verdade que, em muitos momentos (na maior parte deles, de facto), a maioria da população trabalhadora tem uma consciência política moderada, aquém dos desafios da luta anticapitalista. Bem sabemos que a inércia da história e a ação consciente do sistema o favorecem. Se assim não fosse, se, fora de períodos excecionais de convulsão, «as pessoas» vissem «o que está à sua frente», ou seja, como o sistema capitalista arrasta o mundo e as suas vidas para o abismo, o ativismo climático e a militância de esquerda seriam supérfluos. A política — eis a palavra-chave! — (eco)socialista é precisamente a arte de ajudar amplas camadas populares a identificar os seus interesses — eliminar os combustíveis fósseis e iniciar uma transição ecológica justa — e agir para os alcançar. Nunca aconteceu nem acontecerá automaticamente.

Nesse sentido, a frase correta ressalvaria a capacidade que o movimento climático e as forças ecossocialistas (ainda) não têm de fazer esse trabalho — ajudar «as pessoas» a «verem o que está à sua frente». Caberia, ao mesmo tempo assinalar, por um lado, que isso não se consegue na base do voluntarismo — a ação política acelera a história, mas dentro de limites que são impostos pela realidade, e não ao dos nossos desejos. Contudo, haveria também que relevar que é igualmente «impressionante» a «capacidade» crescente de milhões de «pessoas» de verem o que «está à sua frente»: a crise climática e a incapacidade de governos mercados de resolvê-la. Nesse terreno, os avanços recentes são enormes: nos últimos anos, a consciência climática de uma ampla camada da juventude, mas também das classes trabalhadoras, deu um salto em frente. Avançou mais nos últimos cinco anos do que nos 20 precedentes. O terramoto que o expressou e permitiu foram as grandes greves climáticas estudantis de 2019, verdadeiramente «impressionantes».

O facto de Malm se esquecer desse dado «impressionante» não parece ser casual. Uma parte mais aguerrida do ativismo, consciente do pouco tempo que há para mudanças profundas, está ansiosa. Nela cresce uma desesperança: a falta de convicção de que são possíveis mobilizações massivas e atempadas contra o capitalismo fóssil. Seria essa lentidão das massas que justificaria ações «disruptivas» de grupos ativistas isolados. Malm tem-se tornado o maior defensor dessa proposta. A ânsia de ganhar tempo, fazendo ações isoladas, em contradição com a consciência da maioria «das pessoas», leva, na verdade, a uma perda de energia e de tempo.

A denúncia da «incapacidade das pessoas» de verem a crise climática expressa uma desistência, talvez inconsciente, de uma ação política que a torne (mais) visível aos olhos de milhões para, desta forma, ajudar a mobilizações climáticas massivas. Uma desistência, portanto, da tarefa central do ativismo climático: criar consciência e mobilização anticapitalista que afronte o capital fóssil e os governos que o protegem, impondo, através da luta, uma transição justa. Desistindo das massas, desiste-se da política; logo se passa para uma «sabotagem» (na maioria das vezes performativa, não efetiva) feita por reduzidos grupos ativistas.

Frase 2: «O aquecimento global funciona através de máquinas que extraem combustíveis fósseis e os queimam.»

Ainda que sobre algo bastante diferente da primeira frase citada, esta segunda reforça a mesma lógica. Ela é, evidentemente, verdadeira do ponto de vista técnico, mecânico. Mas esta não é uma luta técnica. Não estamos a analisar logística, mas relações sociais, políticas, ecológicas. A origem do aquecimento global não são tubos, refinarias, automóveis, nem mesmo o gás, o carvão e o petróleo. Existe uma sociedade e ela está dividida em classes. O ecologista humano Malm sabe-o melhor do que eu, mas o proponente da «sabotagem» como eixo da luta climática está condenado a esquecê-lo. Reduzir o aquecimento global a «máquinas que extraem combustíveis fósseis» justifica uma estratégia que não precisa de mobilizar massas porque o avo passa a ser técnico e não político. Umas centenas de ativistas chegam para «sabotar» umas máquinas e, em última instância, dois indivíduos podem fechar a conduta de um gasoduto, dispensando até o ativismo coletivo.

Caso, como faz nos seus trabalhos seminais, Malm apontasse para as relações sociais capitalistas, para a complexa rede de poderes estatais e empresariais, para as dinâmicas políticas que daí advêm, e não só para as «máquinas», caberia prescrever a ação política, o uso de uma miríade de táticas, a intervenção direta, mas também ideológica, institucional, partidária… e a «sabotagem» ficaria relegada a uma possível tática complementar, a usar em ações muito específicas.

O preço a pagar por este viés é um certo fetichismo logístico que grassa em algum ativismo climático que só vê tubos, centrais, aviões; desprezando a seca, a agricultura, a mobilidade, a floresta, a vida das pessoas comuns (não que estes temas não surjam, mas são sempre um pano de fundo). Este fetichismo logístico reflete, na verdade, o fetichismo tecnológico da sociedade neoliberal que, atrás de máquinas miríficas, esconde relações sociais de poder. Desmascarar, e não reforçar, este pensamento mágico é a nossa função.

Frase 3: «Estamos muito longe de qualquer tipo de dinâmica revolucionária. Temos de conseguir fazer alguma coisa dentro do sistema que existe.»

A forma mais fácil de criticar esta declaração seria apontar o dedo à conceção reformista que dela decorre. Afinal, não se trata já de «mudar o sistema, não o clima», mas de fazer «alguma coisa por dentro do sistema», reformar o capitalismo. É quase inevitável cair neste pretenso pragmatismo quando se descrê nas possibilidades da mobilização popular. O radicalismo vanguardista e a acomodação reformista são faces da mesma moeda, pois ambas nascem do ceticismo face às possibilidades revolucionárias das classes subalternas. Mas não é por aí que vou.

Como digo acima, algumas asserções de Malm confessam uma certa passividade: mais do que preparar uma dinâmica revolucionária, o académico lamenta-se apenas que ela não existe. Penso que há aqui dois erros. O primeiro é abdicar de procurar quais os pontos de apoio, as lutas, os avanços, em que o nos podemos apoiar para ajudar a criar «dinâmica revolucionária». É certo que as organizações políticas, os movimentos sociais e os sindicatos não podem, por si só, criar «dinâmicas revolucionárias». Essas dependem de fatores económicos, históricos, da (in)capacidade do capital para gerir as suas crises, das forças sociais acumuladas, etc. Mas podem e devem intervir sobre as lutas de massas para ajudar a que se radicalizem e, em certos momentos, abram «dinâmicas revolucionárias». Devemos fazê-lo atuando no terreno, construindo movimentos, mas igualmente pela proposta política, pelo debate ideológico, sobretudo pelo combate aos governos. Por exemplo: há uma seca extrema em curso no país, não será possível politizá-la? Associar as consequências do aquecimento global à exploração da agricultura intensiva e ao boom do turismo de luxo, com a subsequente especulação imobiliária? Não haverá forças sociais e políticas para construir movimento a partir daí? Certamente não seria logo um movimento «revolucionário», mas garantir a sua radicalização também depende da nossa capacidade política. E sobretudo de não baixarmos os braços.

O segundo erro que pode decorrer do lamento de Malm é que, aceitando que não há «dinâmicas revolucionárias», acaba-se a desprezar as lutas em curso. Algumas delas verdadeiramente revolucionárias, mesmo na atual etapa defensiva. Veja-se a insurreição popular chilena (neste momento em refluxo, mas que agitou o país em anos recentes), com o seu protagonismo indígena em muito assente em lutas antiextrativistas — não podemos vê-la como luta climática, pensar como transformar esse potencial em política de transição? Ou a onda de mobilizações contra o aumento da idade da reforma, em França, em que sucessivas greves em refinarias paralisaram mais infraestruturas fósseis em poucas semanas que muitas ações «disruptivas» em anos, — a luta para trabalhar menos, e não mais, não encerra um potencial antiprodutivista? Como podemos tornar consciente essa ligação entre trabalho e clima no calor de uma luta de massas que já está a atacar o capital fóssil? Responder a estas questões não é fácil, mas é certamente mais útil do que encolher os ombros, justificando-se como «a falta de visão das pessoas» ou a ausência de «dinâmicas revolucionárias». Creio que é a partir deste trabalho político, que começa inevitavelmente «dentro do sistema», lutando por reformas, e aponta no sentido da sua superação revolucionária, que se pode resolver a falsa dicotomia entre reforma e revolução em que Malm parece enredado.

Frase 4: «Quando falamos de sabotagem e de destruição da propriedade, é algo diferente de terrorismo. Pode, quando muito, ser classificado como vandalismo».

Por fim, saltou-me à vista a recusa do epíteto de «terrorismo climático» para logo assumir a etiqueta de «vandalismo». A estratégia da «sabotagem» proposta por Malm seria vândala, mas não terrorista, porque ataca propriedade e não pessoas. É justo. Mas, uma vez mais, denota-se um olhar excessivamente técnico, apolítico. O ato e o objeto da ação parecem contar mais do que o sujeito e o seu contexto. Se adotarmos uma lente mais política, lendo a proposta de «sabotagem» climática na sua relação com as diversas classes sociais, o momento da luta de classes e os seus proponente e protagonistas, mais facilmente chamaríamos à proposta de Malm «guerrilheirismo climático» ou mesmo «guevarismo climático».

achar que podemos acelerar artificialmente o relógio da mudança é uma ilusão. Podemos, sim, despertar consciências, radicalizar lutas, aproveitar oportunidades… Fazer isso é fazer política: é ela o único modo de acelerar o tempo histórico para que este se alinhe com a rapidez da catástrofe climática em curso

Porquê? Che Guevara, pela sua coragem e papel histórico, é merecidamente um herói dos povos. Mas não está acima das críticas, várias, que muita gente lhe fez. Uma das que já se lhe apontou é a de, a partir da experiência cubana, querer exportar o modelo guerrilheiro para outras realidades distintas, tipo copy + paste. A sua proposta era a de que um grupo de guerrilheiros (normalmente jovens das classes médias radicalizadas), corajoso, treinado e bem armado, poderia, baseado num ou vários «focos» do território, derrotar as forças repressivas do estado e tomar o poder. A verdade é que nem em Cuba, com a sua revolução única e irrepetível, as coisas foram tão simples. Mas sobretudo, esta exportação guevarista falhou no Congo e na Bolívia, onde Che morreu a, corajosamente, tentar aplicar o seu modelo.

O caso boliviano é paradigmático. Num país com um forte movimento operário, centrado nas cidades, organizado em torno de sindicatos e comuma forte e radical tradição política, Che pensou poder fazer a revolução a partir do campo. Não havia que adaptar a panaceia guerrilheira a um contexto político concreto. Bastavam a coragem e a perícia técnica, sem ter em conta as organizações populares, as suas propostas, anseios e lutas. O povo era para emancipar, não para se emancipar. A intenção era boa, mas o resultado foi péssimo. Isolado, sem apoio popular, sem alianças com o poderoso movimento operário, Che foi mesmo denunciado por camponeses. Agir à margem das populações exploradas, vindo de uma realidade externa, impondo uma luta tida como artificial, paga-se caro. As propostas de Malm, sendo distintas das de Che (ninguém propõe ir para a selva ou pegar em armas), assemelham-se ao guevarismo na sua tentativa de saltar por cima da política, sem dialogar com os ritmos e a consciência das massas, confiando apenas na ação decidida de um grupo (que pode até ter centenas ou milhares de militantes) tecnicamente preparado.

Nenhuma tática deve ser excluída por princípio na luta anticapitalista nem pelo movimento climático. Mas bons são os meios que organizam, radicalizam e alargam o protagonismo das massas exploradas na luta contra o sistema. Isso implica aceitar que não temos um total controlo sobre os ritmos das lutas, o que pode ser angustiante na luta climática, que se dá em contrarrelógio. Mas achar que podemos acelerar artificialmente o relógio da mudança é uma ilusão. Podemos, sim, despertar consciências, radicalizar lutas, aproveitar oportunidades, fazendo propostas, dialogando com milhões de pessoas, fazendo denúncias e exigências ao poder. Fazer isso é fazer política: é ela o único modo de acelerar o tempo histórico para que este se alinhe com a rapidez da catástrofe climática em curso.

Sobre o/a autor(a)

Assistente editorial e ativista laboral e climático
(...)