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Viver não custa, custa é saber viver

Os dois casos empresariais da última semana, a EDP e o Montepio, são um retrato de Portugal.

Os dois casos empresariais da última semana, a EDP e o Montepio, são um retrato de Portugal. Andemos para trás um século ou até um século e meio e é a mesma história: grandes empresas que vivem à conta de favores ou de regras favoráveis.

O senhor milhão

A figura de Henry Burnay é um mito do empresariado português. Eça fez dele o banqueiro Cohen nos “Maias” e fez servir ervilhas à Cohen num jantar de gala; Fialho de Almeida, mais prosaico, chamava-lhe o “pulgão polimórfico”, mas a imprensa ficava-se respeitosamente pelo “senhor milhão”.

Foi industrial e lançou empresas de lanifícios, de vidros, de transportes, fundou a Casa Havaneza, negócios coloniais e outros. Especulou e usou o poder de emissão monetária para pagar as suas próprias dívidas, fez trinta por uma linha. Presidiu a comemorações de Camões, foi benemérito do Jardim Zoológico, viveu principescamente num palácio na Junqueira e, quando morreu, deixou uma fortuna que o colocaria entre os dez homens mais ricos de Paris.

Ganhou quase sempre, mas foi como maior acionista do Banco Nacional Ultramarino que se estribou no poder. Ágil nos circuitos financeiros, Burnay foi o intermediário dos empréstimos internacionais que Fontes Pereira de Melo mobilizou para financiar a sua política e, quando do Ultimato inglês de 1891, foi Burnay quem salvou a situação, ao conseguir o apoio de um sindicato bancário estrangeiro e um acordo com Londres. Isso teve um preço: recebeu o contrato do monopólio dos tabacos, o mais apetitoso de todos os favores régios. Primeiro por 15 anos, depois estendido por mais 20, assim a Companhia de Tabacos Nacional fez o seu poder. Foi deputado por Pombal e depois Setúbal, foi conde, e que importava isso, tinha os tabacos. Em Portugal, foi sempre o Estado que fez os milhões dos milionários e nada mudou.

Os engenheiros de milhões

Foi a manchete deste Caderno de Economia na semana passada e provocou surpresa: as contas da EDP, explicadas por Mexia em conferência de imprensa, revelam que paga 0,7% de imposto sobre os resultados consolidados do seu grupo, ou 10,3 milhões de euros sobre ganhos de 1520 milhões. Em 2016 teria pago 6,6%, de modo que é de supor que os acionistas estejam contentes com as melhorias conseguidas pelos engenheiros financeiros e “senhores milhão” que elegeram. Em particular para o Partido Comunista Chinês, dono do Estado que reforçou a sua participação na EDP e controla agora 28,25%, a notícia é a confirmação de que escolheu bem.

A EDP é dominante num dos oligopólios naturais em Portugal e tem uma capitalização bolsista de 10 mil milhões. Gere negócios em vários continentes. Estendeu-se a várias atividades, o que só ilustra o seu poder. Mas que seria desse poder sem os favores? O favor da privatização, antes de todos; o favor fiscal, modesta compensação perpétua para os acionistas que decidiram “arriscar” num negócio garantido. Teoricamente, uma empresa como a EDP pagaria em Portugal 29,5% de IRC, derrame e outras taxas. Mas o teoricamente é muito teórico: a empresa gaba-se de, no mundo inteiro, conseguir ficar pelos 0,7%, incluindo as operações não domiciliadas em Portugal. Explicam então as contas: 14 milhões são benefícios sobre os dividendos, há depois uma reavaliação de ativos (o que em 2017 deu 174 milhões, este ano são 240) e vamos chegando ao imposto efetivo. Há depois 591 milhões são de mais valias não tributadas em Espanha (o governo português apressou-se a esclarecer que se fosse cá também haveria isenção), mais alguns benefícios fiscais nos EUA e outras artimanhas, ficam todos a perder. É um golpe do baú em todo o lado onde são usados os labirintos dos benefícios fiscais. Incomodada com a manchete, a EDP veio garantir que em Portugal paga muito, lançando o número de 481 milhões. Muito milhão, dizem, aliás esquecendo a contribuição sobre as rendas que a EDP se recusa a pagar desde que o governo deixou de ser do PSD-CDS.

A média de IRC efetivamente pago em Portugal por empresas de resultados de mais de 250 milhões é 25,4%. Mas as taxas efetivas são em alguns casos mais baixas: a Semapa paga 7,1%, o BCP 9,5% e a EDP Renováveis 10%. Pobre Jerónimo Martins, declara pagar 26,9%, faltar-lhe-á um “senhor milhão”?

Os mágicos dos milhões

O segundo caso é o do Montepio, que descobriu o ovo de Colombo: se não tens lucros, inventa-os. Tendo um prejuízo de 251 milhões em 2017, o Montepio vai registar 808,6 milhões em créditos fiscais como ativos por impostos diferidos, passando a ter resultados positivos de 510 milhões. É lindo: o que correu mal é a garantia de que as contas ficam confortáveis.

É legal, sim. O esquema foi inventado para safar as contas dos bancos italianos e depois magicamente estendida a outros países, parece que o BCE gostou da ideia. Mas ela tem duas condições: só entram nesta categoria os efeitos fiscais futuros dos prejuízos efetivos e contabilizados (que são crédito fiscal até 70% do seu valor e por 12 anos, norma PSD-CDS, ou por 5 no caso de grandes empresas, norma do governo PS) e as diferenças temporárias atribuíveis a discrepância entre normas fiscais e contabilísticas, o que é um universo de penumbra. Ora, a empresa deve ter resultados nos anos seguintes para poder confirmar estes “ativos diferidos” nas operações subsequentes – ou perde tudo.

Para a combalida administração do Montepio, a notícia é sorridente. Acumulou entre 2012 e 2017 resultados negativos de 412,8 milhões na associação e de 862,4 milhões em todo o grupo e, em consequência, apresenta resultados positivos de 510 milhões. O problema é que os mutualistas pouco beneficiam desse maná e, pelo contrário, continuam com o risco do prejuízo real.

Que triste, a sina de Portugal são os “senhores milhão”.


Artigo publicado no Expresso, 17 de março de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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