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Viva a democracia operária

A Autoeuropa é a única grande empresa em Portugal que faz referendos para aprovar acordos, coisa nunca permitida por patrões nem por sindicatos em mais lado nenhum.

A Autoeuropa parece estar num impasse negocial depois de 74,8% dos trabalhadores terem rejeitado o pré-acordo negociado entre a Administração e a Comissão de Trabalhadores (CT) sobre a introdução de trabalho ao sábado e as compensações devidas pela perda de um dia de descanso ao fim de semana.

As compensações negociadas pela CT previam um pagamento mensal de 175 euros adicional ao previsto na lei, 25% de subsídio de turno, redução do horário de trabalho semanal para pouco mais de 38 horas e um dia adicional de férias, traduzindo-se num aumento mínimo de 16% no rendimento mensal dos trabalhadores que trabalhassem ao sábado.

Desde a rejeição do pacote negocial, as páginas dos jornais têm-se enchido de preocupações sobre a sobrevivência do modelo de conciliação entre patrões e trabalhadores que parecia fazer avançar a fábrica alemã como um Passat em bom piso.

Durante décadas, a Autoeuropa foi apontada como exemplo de negociação e de entendimento entre a administração e os trabalhadores. Este modelo permitiu, apesar das variações de produção que se sucederam ao longo dos anos, que nenhum conflito de maior monta perturbasse a tranquilidade invejada por tantos outros patrões. Não houve, durante anos, quem não saudasse a democracia operária vigente na Autoeuropa.

Mitos à parte, as chaves do sucesso deste modelo sempre assentaram em dois eixos fundamentais que são únicos no panorama laboral português. O primeiro é a existência de negociações a sério entre a Comissão de Trabalhadores e a empresa. É enorme o contraste com a maioria dos patrões deste país. Enquanto a Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa consegue impor à empresa salários e direitos muito acima das leis gerais do trabalho, a maioria dos patrões recusa-se a negociar com os trabalhadores e prefere pedir favores aos governos para retirar direitos diretamente do Código de Trabalho.

O segundo, seguido desde sempre pela Comissão de Trabalhadores, é a inexistência de intermediários ou tutelas na hora de decidir o que é bom para os trabalhadores. O poder dentro da empresa é, em última instância, dos trabalhadores que aprovam ou chumbam os acordos negociados pela CT, o que lhes confere uma legitimidade democrática inquestionável.

A Autoeuropa é a única grande empresa em Portugal que faz referendos para aprovar acordos, coisa nunca permitida por patrões nem por sindicatos em mais lado nenhum. O que resulta desses referendos é o que faz avançar as negociações, até que um acordo seja aceite pela maioria dos trabalhadores.

Os trabalhadores não concordaram com esta proposta e expressaram-no, realizando até uma greve de protesto. A situação não só não é inédita (em 2009 os trabalhadores da Autoeuropa também disseram em referendo que achavam insuficiente o pré-acordo conseguido nas negociações), como faz parte do modelo de entendimento entre patrões e trabalhadores que foi tão elogiado durante tanto tempo.

O conflito dentro da Autoeuropa prosseguirá seguindo os princípios de participação e democracia operária de sempre, até que os avanços nos direitos ditem as tréguas com a Administração. Só por erro de análise sobre a história da Autoeuropa é que se pode colocar a dita paz social acima da democracia.

Uma coisa é certa, a resolução deste impasse não está em lançar dúvidas sobre o futuro do modelo T-ROC na fábrica de Palmela, um investimento negociado com intervenção direta do governo e que o governo não pode permitir que se transforme em chantagem provocatória e ameaça patronal.

Artigo publicado no jornal “I”, em 30 de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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