Está aqui

Violência da GNR e Odemira revisitadas

O PS não serve Odemira. Serve os latifundiários do séc.XXI, serve as redes que lucram com a “exportação e importação” dos trabalhadores agrícolas. O debate sobre Odemira é um debate ilustrativo dos grandes desafios dos nossos tempos e o PS escolheu o seu lado.

Mais uma vez, Odemira volta à ribalta. Desta feita, pelas atrocidades cometidas por elementos da GNR de V.N.Milfontes a trabalhadores migrantes. Não é a primeira vez que a GNR de Milfontes é associada a tortura e sequestro de migrantes. O advogado de um dos militares lamenta que o assunto tenha sido politizado.

É impossível não politizar a desumanidade da GNR por dois motivos: primeiro, porque é mais uma prova da violência policial racista que é preciso erradicar; segundo, porque o contexto em que ela se dá – Odemira – precisa de ser discutido. A violência policial não se explica apenas por uma característica endémica às forças de segurança. Ela é estrutural, não apenas pelas especificidades institucionais deste tipo de autoridade, mas porque se insere numa estrutura que a fomenta. Odemira precisa de ser alvo de um debate político e social prioritário a nível nacional porque concentra tantas questões fundamentais da nossa democracia: trabalho, migrações, racismo, violência policial, habitação, agricultura, ambiente, turismo, para enumerar apenas algumas.

1. A violência policial e a desumanização dos trabalhadores

Odemira é uma bomba-relógio que não explode, vai explodindo. Explodiu quando a GNR interveio em nome do patrão das estufas e invadiu a casa dos trabalhadores e os espancou. Explodiu quando Pedro Nuno Santos aceitou alojar mais trabalhadores em contentores. Explodiu quando a covid-19 expôs as condições insalúbres em que vivem os migrantes, obrigando a uma cerca sanitária. Explodiu quando Milfontes foi vandalizada por grupos de jovens turistas da elite urbana. A diferença de tratamento por parte da GNR entre estes jovens e os imigrantes é exemplo paradigmático de quem serve a GNR.

Os trabalhadores migrantes tornam-se alvo da violência física e psicológica da GNR não apenas porque os militares da GNR são racistas, mas também porque a vida destes trabalhadores é publicamente desvalorizada. Quando os migrantes são alojados em contentores com aval público, o seu direito à habitação é inferiorizado. Quando trabalham horas a fio, em condições degradantes e inseguras, com salários baixos, os seus direitos laborais valem menos. O abrir de exceções e o fechar de olhos pelas entidades públicas responsáveis desvaloriza, inferioriza, desumaniza indiretamente estes trabalhadores. É preciso, no entanto, sublinhar e fazer justiça aos autarcas do litoral alentejano que desde a prospeção de petróleo, à agricultura intensiva e aos trabalhadores migrantes, têm levantado a sua voz, perante um governo que continua a permitir a catástrofe humana e ambiental no Alentejo.

2. As estufas, o Parque Natural e a seca

Hoje, não é possível dizer que não conhecemos a situação atroz que se vive em Odemira. Sabemos que as estufas são um perigo ambiental que vai destruindo lentamente o Parque Natural. Ouça-se quem sempre viveu aquele mar e reconhece nele a morte lenta a que as estufas o condenaram. Estas estão de tal forma associadas ao “mal” que valeram ao PAN um escândalo quando se descobriu que Inês Sousa Real era proprietária de estufas. Defendeu-se dizendo que não tinha estufas, mas “túneis”. Basta ir ao Brejão, onde Amália deu nome à praia, ver as estufas que, afinal, por excesso de abertura à entrada e à saída, são “túneis”. A defesa semântica de Inês Sousa Real é apenas um exemplo das muitas manobras de diversão que têm permitido desvalorizar o assunto. Da parte do governo e da direita, argumenta-se que as estufas ocupam apenas x ou y do Perímetro de Rega do Mira, ou que a agricultura já existia antes do Parque Natural, como se a criação oficial do Parque correspondesse à criação natural do mesmo, ou como se a agricultura do litoral alentajano do séc.XX fosse comparável às culturas intensivas de hoje. No governo e à direita, sacode-se a água do capote.

E por falar em água. Temos agora no Algarve, migrando para o Alentejo, a produção de abacate. José Fayo, empresário agrícola no sudoeste alentejano, é um dos defensores da produção de abacate na região. Afirmou até que os abacates, nascendo em árvores, possibilitam absorver o dióxido de carbono das estufas.1 Nesta lógica, ciência à parte, o abacate é, portanto, bom para a região. Contudo, não faltam exemplos que mostram o contrário. A partir da década de 90, o Chile lançou-se na produção massiva de abacate com consequências catastróficas: a seca. Grande parte das populações locais são hoje abastecidas de água por camiões, em depósitos com vista para a produção do “ouro verde”, como ficou conhecido. Nas palavras de um trabalhador agrícola chileno: “En Chile no hay sequía, hay saqueo”.2 Em Odemira, tal como no Chile, a seca faz-se sentir e o saque é cada vez mais óbvio. O Perímetro de Rega do Mira é cada vez menos capaz de responder à procura de água. A assimetria de limites ao consumo impostos aos grandes e aos pequenos produtores agrícolas gera cada vez mais conflito, em que perdem os pequenos, obviamente. A seca e os pesticidas ameaçam hoje o Mira (que foi já o rio mais limpo da Europa), esmaga quem dele sempre viveu. Entretanto, sai impune quem destrói o Parque Natural à custa de mão de obra quase escrava, aparentemente, com a ajuda da GNR no disciplinar dos trabalhadores, “ensinados” a baixar a cabeça, em episódios como os agora conhecidos.

3. O governo PS, a direita e a “premonição” no sudoeste alentejano

Em setembro, uma campanha alemã apelava ao boicote aos produtos oriundos das estufas do sudoeste alentejano. Esta campanha pode ter sensibilizado para o tema, mas os novos latifundiários admitiram não temer quebras significativas nas vendas.3 O boicote pode dar saliência ao problema, mas a ação inidividual não surte efeitos. A renúncia pessoal às panquecas com mirtilos no brunch num qualquer concept café de uma capital europeia, ou à super food do abacate, nao resolverá o problema.

A resposta tem de ser coletiva. Para isso servem os órgãos democráticos. É aqui que a resposta falha. Em 2019, o Governo permitiu triplicar as zonas cobertas de plástico no Parque Natural e autorizou que se alojassem mais trabalhadores em contentores.4 A população mobilizou-se e uma petição chegou ao Parlamento.5 Bloco de Esquerda, PCP, PEV e PAN apresentaram projetos que iam ao encontro e acompanhavam a petição – travar a agricultura intensiva no sudoeste alentejano. Apenas um projeto foi aprovado (PAN), recomendado o mais básico dos básicos – que as condições de trabalho nas estufas respeitassem os princípios fundamentais da Constituição. Os restantes projetos que travavam, de facto, o saque no Alentejo, foram rejeitados pela direita e pelo PS. O esforço e a luta da população, bem como dos autarcas do PS no litoral alentejano, não se traduzem, portanto, na ação do PS no Parlamento, nem fazem eco no Governo. O PS que chora lágrimas de crocodilo quando a GNR tortura trabalhadores migrantes é o mesmo PS que tem permitido o galope das estufas e a desumanização dos trabalhadores migrantes. É o mesmo PS que tem virado as costas aos seus próprios companheiros de partido, maioritários em Odemira, mas já com sinais de alarme. Nas autárquicas, o PS perdeu 9% dos votos face a 2017. Os autarcas locais não podem segurar o barco sozinhos.

Façamos um pequeno exercício. As duas freguesias que mais concentram estufas no concelho de Odemira são a Longueira/Almograve e São Teotónio. A freguesia que mais cresceu a nível nacional nos censos 2021 foi a Longueira/Almograve. Cresceu 72% em 10 anos. São Teotónio cresceu também incrivelmente - 35%. Este crescimento é atribuído ao aumento da população migrante. Contudo, existem diferenças. Para além dos 37% que separam as freguesias em crescimento populacional, a escolaridade varia bastante. Em São Teotónio, o grau de escolaridade mais comum é “nenhum”, na Longueira/Almograve é o ensino secundário. A procura de diferenças nos censos foi-me pessoalmente motivada por uma constatação anterior. Nas autárquicas deste ano, a Longueira/Almograve é um fenómeno por compreender. Apesar de o PS e CDU serem as primeiras forças políticas, comum em Odemira, a Iniciativa Liberal (15,48%) e o Chega (6,05%) ocupam a 3ª e a 4ª posição. Este resultado destoa, por exemplo, de São Teotónio, em que a IL alcança 5,11% dos votos e o Chega 2,98%. Em 2017, a direita junta (PSD e CDS) não chegava ao resultado combinado da IL e do Chega em 2021, na Longueira/Almograve. Convém notar que a população votante manteve-se praticamente inalterada entre 2017 e 2021 e que a grande maioria da população que trabalha nas estufas não vota. Quem é esta população que, mais qualificada, num dos epicentros das estufas, começa a alterar o seu sentido de voto, à procura de uma nova direita? Este exercício serve apenas de alerta a um caldeirão político que se está a cozinhar no Alentejo. Se o litoral não segue a tendência para o crescimento da extrema-direita que se vê no interior, as consequências da política do PS para o litoral alentejano começam a ter efeitos. A evolução e os resultados eleitorais da Longueira/Almograve, por mais residual que seja o exemplo, são um pequeno pré-aviso da fratura social que a política de salganhada, entre turismo, agricultura intensiva e abandono total, pode provocar.

Esta semana, repórteres entrevistaram pessoas nas ruas de Milfontes sobre a violência da GNR. Ouvi solidariedade com os migrantes, compreensão, empatia de trabalhador com trabalhador, de emigrantes regressados com imigrantes chegados. Exemplo desta solidariedade é a ação da SOLIM, do SOS Racismo e dos movimentos de cidadãos em Odemira e Aljezur que têm movido mundos e fundos por esta terra onde a planície alentejana encontra o mar. Mas os movimentos desgastam-se à medida que vão batendo com o nariz na porta.

O PS não serve Odemira. Serve os latifundiários do séc.XXI, serve as redes que lucram com a “exportação e importação” dos trabalhadores agrícolas. O debate sobre Odemira é um debate ilustrativo dos grandes desafios dos nossos tempos e o PS escolheu o seu lado. Sem todo o apoio e permeabilidade aos movimentos sociais que batalham pela justiça climática e social, o lado escolhido pelo PS pode ser o derrubar do último pináculo de defesa da democracia no Alentejo e a própria cova do PS que, infelizmente, arrastará outros consigo, em especial os mais vulneráveis, os trabalhadores agrícolas. Não basta chorar, bradar aos céus perante acontecimentos horrendos como a violência da GNR de Milfontes. É imprescindível ter em conta tudo o que orbita estes acontecimentos e uma nova política estrutural para a região. No Alentejo, estamos cada vez mais perto do abismo.

Notas:

2 “No Chile não há seca, há saque.” https://www.efeagro.com/microsite/aguacate-oro-verde-seca-chile/

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
(...)