Violação, crime público

porJoana Mortágua

18 de abril 2021 - 0:10
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Não podemos ignorar que o substrato deste crime é uma cultura de subjugação e objetificação sexual das mulheres e meninas provada pela tendência de reincidência dos agressores, protegidos pela estigmatização social e culpabilização das vítimas.

Porque nenhuma violação dos Direitos Humanos deve ser contida no foro privado da vítima, perpetuada pela impunidade do agressor e pela negação de justiça. Porque o atentado à dignidade humana das mulheres e crianças vítimas de violência, abuso e coação sexual diz respeito à sociedade, aos seus preconceitos e desigualdades. Porque não podemos ignorar que o substrato deste crime é uma cultura de subjugação e objetificação sexual das mulheres e meninas provada pela tendência de reincidência dos agressores, protegidos pela estigmatização social e culpabilização das vítimas.

Há mais de 20 anos, Luís Fazenda e Francisco Louçã fizeram a defesa destes mesmos argumentos e ganharam a unanimidade do Parlamento para considerar a violência doméstica como crime público. Foi um abanão nas convenções sociais que durante séculos normalizaram a imagem do marido que chega a casa aborrecido e espanca a mulher ou os filhos: entre marido e mulher, todos passamos a metemos a colher.

Antes disso, muitas ativistas discutiram e lutaram pela necessidade de um novo enquadramento penal para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica. Helena Pinto lembra o tempo “em que as mulheres não tinham condições nem coragem para ir a uma esquadra de polícia, de entrar por ali adentro para, encostadas a um balcão, onde só haviam homens, dizer a um polícia, ou a um guarda-republicano: “Eu sou vítima de maus tratos, o meu marido agride-me e eu venho aqui apresentar queixa”.”

A antiga deputada do Bloco de Esquerda lembra a intervenção da socialista Maria Alzira Lemos numa audição pública promovida no Parlamento: “Porquê discutir em torno da necessidade ou não do crime público? Estamos a falar de quê? Estamos a falar de direitos humanos. E se estamos a falar de direitos humanos, o crime só pode ser público. Não há outro meio-termo. Não se pode deixar só a responsabilidade sobre as vítimas”.

Foi a partir desta ideia simples de que não se pode abandonar as vítimas a si próprias, como se fossem elas as responsáveis pelo confronto com o que há de mais podre na sociedade machista, que as políticas públicas de proteção de vítimas de violência doméstica começaram a ganhar forma. Viemos de longe.

De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna de 2019, a violação é o sétimo crime mais praticado no país na categoria de crimes graves. Nesse ano chegaram às autoridades 431 casos - estes dados não incluem violação de menores de idade. Os números de 2019 representam um aumento relativamente a 2018. Pelo menos desde 2006 que nunca se registou um número tão alto de violações. Praticamente a totalidade dos arguidos nestes processos são homens (99,3%). Em mais de metade dos processos (58%) a vítima e o agressor são familiares ou conhecidos.

Estes são os dados que destroçam o argumento da proteção da intimidade da vítima, utilizado agora e há vinte anos para recusar o crime público. Todas as meninas e mulheres estão acostumadas a sentirem-se mais ou menos inseguras na rua mas não há horror maior do que o de ter de voltar todos os dias para casa sabendo que o perigo está lá dentro. Quem é que pode dormir bem à noite, agarradinho à almofada da “privacidade”, sabendo que não fizemos tudo para as proteger?

Os crimes públicos não dependem de apresentação de queixa por parte do ofendido ou de outrem, que seja titular do direito de queixa, e isso pode fazer toda a diferença. Há um sofrimento pela exposição pública de uma violação num inquérito judicial? É certo. Mas aqueles que querem poupar essa dor, dificultando o combate a essa cultura de agressão, não medem o sofrimento que se arrasta pela vida pela lesão da autodeterminação sexual.

“Achei que era responsabilidade da sociedade civil. Se uma mulher é violada, somos todas.” disse Francisca de Magalhães Barros ao lançar a petição para converter o crime de violação em crime público que em duas semanas recolheu 60 mil assinaturas.

O Bloco de Esquerda agendou para hoje a discussão do “Projeto de Lei que Consagra os crimes de violação, de coação sexual e de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência como crimes públicos”. Argumentos serão esgrimidos, todos em aparente proteção das vítimas. Mas já não há desculpas e vinte anos depois de uma lei incontestada ninguém pode dizer que é um tiro no escuro. Aliás, vinte anos depois da consagração da violência doméstica como crime público, ainda há assim tanto por dizer?

Artigo publicado no jornal “I” a 15 de abril de 2021

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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