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Vida boa?

Há palavras que transportam visões alternativas da vida e, se nos transportam com elas, podem ser metáforas da vida verdadeira.

Há quem diga que Mariana Mortágua se inspirou no rapper Slow J, que canta o desejo de “comida, água, teto, ser feliz e ter afeto” para explicar o seu desejo de uma “vida boa”. Há também quem lembre o “buen vivir” dos povos originários da América do Sul, conceito que ganhou destaque na gramática política do movimento indígena. Na realidade, em alguns países, o “viver bem” foi até inscrito na Constituição, como na Bolívia. É ao mesmo tempo um horizonte e uma orientação para a ação, baseada em valores ancestrais que fundem o material e o emocional, as formas de existência comunitária que recusam a separação entre pensar e sentir e que buscam outras medidas para o “bem-estar”, além de “indicadores” como o Produto Interno Bruto ou o mero “crescimento” que não tem em conta a partilha da riqueza crescente, os limites do planeta, a igualdade, a harmonia entre as pessoas e a terra que habitamos.

Pouco importa a proveniência da expressão. A questão é saber se ela nos ajuda a definir novas formas de organização social, outras práticas políticas. Como a Mariana, eu creio que sim. Que precisamos dessa aspiração a uma “vida boa” para todas as pessoas, mesmo que isso implique pôr em causa a “boa vida” dos donos disto tudo.

Em primeiro lugar, porque não nos basta durar, sobreviver. Temos direito a muito mais. Uma “vida boa” para todas as pessoas pode bem ser a expressão de um bom senso radical. É do domínio do senso comum aspirarmos a uma vida que garanta a segurança dos mínimos - casa, emprego, cuidados, descanso, cultura -, mesmo que, no atual estado de coisas, isso seja revolucionário. Ideia simples e sensata, a “vida boa” para todos implica virar muita coisa do avesso.

A “vida boa” pode declinar-se, se quisermos, num programa e numa política concreta, ainda que seja mais que um somatório de reivindicações. Ter uma casa, um salário decente, cuidados no dia-a-dia, na doença, quando temos filhos, quando a idade pesa, com o planeta. Respeitar a terra. Ter acesso à fruição e à criação cultural - não apenas consumi-la mas inventá-la para nos exprimirmos através dela. Não vivermos na ansiedade permanente do momento próximo, no aperto de não saber se o salário chega ao fim do mês, se serei despejado, se o contrato renova, se serei insultado por fazer determinada escolha, se terei assistência caso precise. É essa forma específica de segurança, socialmente organizada, que nos traz liberdade. É podermos cooperar em vez de competir, ser diverso em vez de esconder, ter relações expressivas em vez do cálculo instrumental, ter acesso aos bens comuns (a água, o planeta…) e aos serviços básicos (saúde, educação, proteção social, mobilidade) como direitos humanos.

Um programa político que desista de transformar, que não enuncie horizontes, que se conjugue apenas na linguagem da gestão do presente, de pequenas variações no que existe, de ajustes emergenciais, está condenado a reproduzir, com mais ou menos enfeites, um modelo de desenvolvimento que nos conduz ao abismo climático, à perpetuação de desigualdades, à manutenção da pobreza (a outra face, indissociável, da riqueza extrema), à condenação das gerações mais novas a condições de vida piores que as dos seus pais.

E todavia, existem recursos para termos todos uma vida que valha a pena ser vivida. A questão é querermos mudar de paradigma: no regime económico, baseado na acumulação; na sua condução política, baseada no medo do mal menor e na ameaça de que possa piorar; no seu regime social, que é a precarização ampliada da vida e o esgotamento da convivialidade.

Em segundo lugar, a enunciação do direito de todas as pessoas, sem exceção, a uma “vida boa” questiona profundamente o refrão fatalista: “é a vida!”. E, por isso, todos os situacionismos, que entendem que o mundo sempre estará dividido entre quem tem direito às “delícias da vida”, e os outros, nascidos para a “noite sem fim”, para usar as expressões de William Blake.

A “vida boa” pode ser horizonte e batalha. Contra a captura do que produzimos e da nossa subjetividade. Pela redistribuição de tudo: emprego, recursos, bens comuns, trabalho, tempo

Exortar a uma “vida boa” para todas as pessoas transforma-se pois numa convocatória de luta. Ninguém precisa de ouvir um político explicar-lhe os males que vive – quem não sabe das suas dificuldades? Mas lutar implica outra coisa: somar à dificuldade o sentimento de injustiça e um horizonte.

A “vida boa” pode ser horizonte e batalha. Contra a captura do que produzimos e da nossa subjetividade. Pela redistribuição de tudo: emprego, recursos, bens comuns, trabalho, tempo.

Sei bem que há mais palavras e outras expressões para nomear esse horizonte e essa batalha. Socialismo, por exemplo. Mas importa sobretudo que há palavras e expressões que nos permitem vislumbrar outras possibilidades. Há palavras que transportam visões alternativas da vida e, se nos transportam com elas, podem ser metáforas da vida verdadeira.

Artigo publicado em expresso.pt a 31 de maio de 2023

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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