Às vezes ficamos com um travo amargo na boca

porAndreia Baptista

14 de setembro 2024 - 19:12
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A nossa sociedade existe e persiste porque somos interdependentes, porque não nos bastamos sozinhos. O trabalho de agora é reerguer esse reconhecimento, a que alguns chama comunidade, outros chamam país, outros chamam civilização.

Dificilmente alguém dirá que se considera má pessoa. É um facto, as pessoas gostam de pensar em si como essencialmente benfeitoras com maus momentos. É por isso que as pessoas que dizem as maiores alarvidades são, muitas vezes, as que no momento a seguir estão preparadas para nos graciar com um ato de bondade genuína. A gente que é boa gente, mas fala com o coração na boca, dirão.

Conhecemos todos pessoas assim. Às vezes até são nossos pais ou nossos irmãos. Muitos deles mudaram nos últimos anos, ao mesmo tempo que Trumps, Bolsonaros, Elon Musks cresciam. Passaram a ser mais provocadores nos jantares de Natal, a enviar-nos mais vídeos do youtube, a ter menos tempo para nos ouvir e mais para nos caricaturar. Mas atenção: no mesmo período nós mudámos também. Tentámos mais vezes que essas pessoas entendessem como estavam a ser cúmplices do crescimento de projetos autoritários, fomos menos pacientes, atendemos menos telefonemas. Tornámo-nos menos tolerantes e menos dispostos a ouvir o discurso da violência gratuita. Não condeno nenhuma destas coisas, eu própria as cometi por vezes. E certamente os jantares foram menos agradáveis.

O medo é que construamos culturas juntos, formas de coexistir

Vi nas redes sociais que alguém dizia que Tim Walz, o companheiro de campanha de Kamala Harris era reminiscente a muitas mulheres liberais dos pais que tinham perdido. Pessoas que eram a figura de pais de família e passaram a reproduzir aquele discurso tão violento e tacanho. Isto não é afirmar que Walz é um candidato da esquerda socialista, embora, num partido altamente liberalizado, tenha tomado algumas iniciativas para o bem-comum. Donald Trump até o insultou ao dizer “Ele é pior que o Bernie Sanders”. Mas também para mim é refrescante ver pessoas que falam sobre a igualdade, os direitos sociais como senso comum.

Refiro-me à nossa sensibilidade e ao espaço que vamos perdendo. Quando digo “nossa”, talvez queira dizer “minha” e utilizar o plural dilui mais essa dimensão. Mas estamos a lidar com desafios tão grandes - sociais, políticos, ambientais - que se pode tornar fácil ver o primeiro objetivo da extrema-direita de forma menos clara. Semear a divisão social. Tornar todos os assuntos tão intratáveis, dos grandes (a geopolítica, as alterações climáticas,...) aos mais comezinhos. O ar torna-se irrespirável.

A democracia não é isto. É a diferença, o debate, a alteridade verdadeira . Mas nós falamos e discutimos uns com os outros porque temos um país em comum, uma sociedade em comum, um futuro em comum. Não porque podemos desfazer-nos uns dos outros, coisa a qual nem o sistema carcerário moderno professa. Temos de viver com. Dizia o cacique de Seattle ao presidente norte-americano em 1885: “Nem mesmo o homem branco pode escapar ao nosso destino comum”.

É esse o pesadelo da extrema-direita. Que os nossos sangues se toquem, que o senhor do café de Lisboa conheça a tradição e o passado islâmico da sua cidade, a mesma riqueza histórica que carregam os novos imigrantes. O medo é que construamos culturas juntos, formas de coexistir. É que nos apercebamos que por mais técnicas de survivalismo que quem tem possibilidades tente empregar não podemos escapar à poluição carregada pela chuva. Não podemos escapar à violência que exercemos sobre os outros porque as exercemos sobre nós próprios. A nossa sociedade existe e persiste porque somos interdependentes, porque não nos bastamos sozinhos. O trabalho de agora é reerguer esse reconhecimento, a que alguns chama comunidade, outros chamam país, outros chamam civilização.

Andreia Baptista
Sobre o/a autor(a)

Andreia Baptista

Atriz, ocasional jornalista freelancer. Membro da Comissão Política do Bloco de Esquerda.
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