Vencer a novilíngua

porMiguel Cardina

02 de novembro 2012 - 12:31
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Um espectro paira na boca dos nossos governantes: o espectro da novilíngua. A novilíngua é a ideologia feita senso comum. É a língua que o poder dominante usa para legitimar a sua política.

Um espectro paira na boca dos nossos governantes: o espectro da novilíngua. As forças políticas no poder, os sectores económico-financeiros que enriquecem com a crise e um punhado de comentadores muito mediáticos usam-na para consolidar a sua aliança sagrada. A novilíngua é a ideologia feita senso comum. É a língua que o poder dominante usa para legitimar a sua política.

A novilíngua austeritária faz-se dos eufemismos que nos circundam. Ela naturaliza uma visão de mundo que busca a retração do Estado (“gordo”) e a entrega a privados de áreas de provisão pública (“ajustamento estrutural”). Convence-nos do predomínio dos mercados e dos interesses dos credores em detrimento dos interesses dos cidadãos (“honrar os compromissos”). Aposta na destruição do valor do trabalho e no corte nas prestações sociais (“incentivo à procura de emprego”). Faz-nos crer que o desemprego é voluntário e radica na falta de ambição pessoal (aposta no “empreendedorismo”).

Se algumas destas expressões são tão velhas quanto as propostas de engenharia social do neoliberalismo, também é verdade que Portugal soube gerar os seus artífices da língua. Pedro Passos Coelho apelou à emigração referindo a “saída da zona de conforto” e chamando “piegas” a quem não se conforma com o suicídio assistido em curso. Miguel Macedo dividiu o país entre as “muitas cigarras” e as “poucas formigas”. Aguiar Branco reescreveu Nozick e cunhou a noção de “Estado indispensável”. Vítor Gaspar desenhou um “círculo virtuoso de credibilidade acrescida” para descrever a fé que tem na austeridade como solução.

A discussão do OE2013 foi terreno fértil neste tipo de insídias terminológicas. O destaque vai para a já famosa “refundação” do memorando. Passos Coelho lançou a expressão entre apelos ao PS e sugestões sobre a necessidade de “reavaliar as funções do Estado”. A “refundação” remetia assim para o programa histórico da direita, o de ajuste de contas com uma Constituição que - como Pinto Balsemão anunciou - seria necessário “aligeirar”. Mas a “refundação” era sobretudo o aviso de que uma dose reforçada de austeridade estaria em preparação.

Sabê-lo agora depois do anúncio feito por Marques Mendes num canal televisivo. Os técnicos do FMI já cá estão a “assessorar” a definição de um novo plano para cortar mais quatro mil milhões de euros. Atacado o lado da “receita”, o assalto vira-se agora para a “despesa”: mais concessões a privados, despedimentos na função pública e aumento dos co-pagamentos na Saúde e na Educação. Uma nota do Ministério das Finanças esclarecia ontem que o FMI e o Banco Mundial são instituições que têm “profundo conhecimento e experiência no aprofundamento do corte da despesa”. Leia-se: que têm um currículo de décadas a desvalorizar salários e a dar cabo dos serviços públicos.

A novilíngua debita os eufemismos necessários à aceitação do empobrecimento como fatalidade. Há cada vez mais restrições no acesso a cuidados de saúde, cada vez mais jovens a abandonar o ensino, cada vez mais cortes nas prestações sociais? Ainda não se fez a “reforma do Estado”. Temos mais de um milhão de desempregados, mais de um terço de jovens sem emprego, noventa empresas fechadas por dia? É preciso “ajustar a economia”. Vivemos num país com um salário mínimo de miséria, com bolsas crescentes de pobreza, que todos os meses empurra milhares de portugueses para a emigração? Temos todos de “fazer sacrifícios”. Temos em funções um governo em descrédito e uma oligarquia que historicamente vive nas dobras do Estado? “Não há alternativas”. Ou, na versão de Fernando Ulrich, o país “aguenta”.

Domar as palavras é fundamental para manter o controlo político. Quando George Orwell falou da novilíngua descreveu-a como um mecanismo produtor de duplopensar. É assim que, diante dos nossos olhos, todos os dias somos informados de que atacar o Estado social é salvar o Estado social, destruir emprego é criar emprego, empobrecer o país é reajustar o país. Também aqui é preciso vencê-los.

Miguel Cardina
Sobre o/a autor(a)

Miguel Cardina

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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