Vamos aprender alguma coisa com os dois anos de pandemia?

porMoisés Ferreira

10 de março 2022 - 22:37
PARTILHAR

11 de março de 2020: a OMS declara a Covid-19 uma pandemia. Dois anos depois há muitas aprendizagens a fazer: que o SNS deve ser reforçado, que os profissionais devem ser valorizados, que a precariedade e as formas atípicas de relações laborais devem ser combatidas…

11 de março de 2020: a Organização Mundial de Saúde declara a Covid-19 uma pandemia. Por essa altura, poucas semanas depois dos primeiros casos detetados na China, a nova doença já se encontrava em mais de 100 países e os casos diários tinham aumentado 13 vezes. Portugal já tinha registado as primeiras infeções, iniciava o crescimento exponencial da doença e estava a poucos dias do primeiro confinamento.

O SNS pôs-se a caminho e os profissionais ganharam dimensão de heróis, mesmo para quem poucos anos antes os tinha apelidado de ‘gorduras do Estado’. Enquanto tudo parava, os hospitais reformulavam-se para receber os que necessitariam de internamento e que em pouco tempo chegariam, os Cuidados de Saúde Primários acompanhavam diariamente casos diagnosticados e casos suspeitos e monitorizavam o seu estado de saúde. A ciência mostrou que não é uma despesa, mas sim um investimento. Foi na academia que se começaram a fazer os primeiros testes de diagnóstico e em tempo recorde chegava-se a uma vacina.

Os comportamentos individuais alteraram-se e concluiu-se que muito do que é o comportamento coletivo, da organização social, deveria modificar-se também. Afinal, como há tanto se sabe, existem sempre determinantes sociais e económicos que explicam as doenças e a Covid-19 não era exceção. As freguesias com maior privação material eram aquelas onde se registava mais incidência, os trabalhadores informais ou com salários mais baixos foram os mais expostos, a precariedade não permitia o confinamento… Enfim, a pobreza gera sempre mais doença, mesmo quando se trata de uma pandemia.

Foram (têm sido) dois anos de aprendizagens, muitas delas feitas no momento, mas que não se querem momentâneas. Pelo contrário, são aprendizagens que devemos querer permanentes.

Será que as aprendizagens da pandemia levarão a um reforço do SNS, a uma separação clara entre público e privado e a uma delimitação dos recursos?

O serviço público de saúde, coerente, organizado e estruturado, com articulação entre saúde pública, cuidados primários, cuidados hospitalares e outros, como os cuidados continuados e as respostas sociais, mostrou ser o único que verdadeiramente consegue responder a uma catástrofe sanitária e, por maioria de razão, o único que consegue uma resposta robusta e coerente em todos os outros momentos. Mas será que as aprendizagens da pandemia levarão a um reforço do SNS, a uma separação clara entre público e privado e a uma delimitação dos recursos?

Os profissionais de saúde mostraram ser inexcedíveis e, mais do que isso, insubstituíveis. De repente percebeu-se que eram precisos muito mais profissionais no serviço público, que afinal o Estado não era um monstro gigante como os liberais gostam de pintar. Percebeu-se também que estes mesmos profissionais mereciam muito mais do que lhes era oferecido, seja a nível de salário, seja a nível de carreira. Será que as aprendizagens da pandemia levarão a uma revisão geral das carreiras, ao fim dos congelamentos e ao lançamento de uma política de atração de fixação de profissionais?

Será que as aprendizagens da pandemia levarão a uma revisão geral das carreiras, ao fim dos congelamentos e ao lançamento de uma política de atração de fixação de profissionais de saúde?

A saúde não se esgota nos cuidados de saúde primários ou hospitalares. Ela está – e deve ser promovida – no trabalho e nas relações de trabalho, no salário, na habitação, nos transportes públicos…. Afinal, não se tornou evidente que casas sobrelotadas e sem condições de habitabilidade são enormes problemas sanitários? E não ficou provado que a precariedade e a informalidade do trabalho expõem os trabalhadores a situações mais penosas e perigosas para a sua saúde? Será que aprenderemos que precisamos de elevar as condições de vida – de salário, de habitação, de transporte, etc. – para melhorar também a saúde geral da população?

Marcelo Rebelo de Sousa condecorou o SNS no dia em que passaram dois anos sobre o primeiro caso diagnosticado em Portugal. Será que abandonou a posição que teve de defender e promover as PPP na saúde em Portugal?

Marcelo Rebelo de Sousa condecorou o SNS no dia em que passaram dois anos sobre o primeiro caso diagnosticado em Portugal. Será que abandonou a posição que teve de defender e promover as PPP na saúde em Portugal? Não foi ele que ameaçou vetar qualquer Lei de Bases que não permitisse esta forma de destruir o SNS?

E a atual Ministra da Saúde que recebe a distinção em nome do SNS? Terá alguma intenção de traduzir essa condecoração em algo concreto? No fim do subfinanciamento, na exclusividade com incentivos, na elaboração de carreiras e progressões justas… qualquer coisa? Ou manter-se-á na linha das medidas semânticas, onde a dedicação plena permite, afinal, a acumulação do público com o privado e onde a autonomia de contratação não permite, no fim de contas, o aumento do número de profissionais ou o aumento da despesa com profissionais?

Era bom que as aprendizagens da pandemia se concretizassem em ações concretas. Mas não parece que assim seja. Forças com interesses opostos há muito que se posicionam no terreno. Querem disputar a narrativa, destruir a hegemonia em torno do SNS e aproveitar a maioria absoluta do PS, confiando que ela beneficiará os interesses de sempre.

Não estamos já fartos de ouvir o ex-secretário de Estado do PS e patrão do lóbi da hospitalização privada, Óscar Gaspar, a dizer que é preciso aumentar o financiamento do setor privado para recuperar listas de espera e outras? Não estamos já cansados de ver os que fugiram do combate à pandemia a apontar o dedo ao SNS? Vêm agora sobre os serviços extenuados e sobre os profissionais esgotados dizer que eles não foram suficientes, que falharam nas respostas, que são culpados de não acompanhar utentes… Tentam engordar dos despojos… E não foi o patrão dos patrões, rejubilando com a maioria absoluta do PS, que disse que estava agora no momento de fazer as ‘reformas’ (já sabemos o que isto quer dizer em economês liberal, não sabemos?) como a redução do Estado, onde naturalmente se inclui o SNS.

Dois anos depois da pandemia há muitas aprendizagens a fazer e a tornar permanentes: que o SNS deve ser reforçado, que os profissionais devem ser valorizados, que a precariedade e as formas atípicas de relações laborais devem ser combatidas, que a habitação deve ser uma prioridade… No entanto, dos despojos da pandemia os liberais pretendem criar um novo mercado, que é como quem diz, aproveitar a oportunidade de transferir ainda mais dinheiro público para os interesses privados… e os lóbis encostam-se, sem pejo, ao PS e à sua maioria absoluta para impedir qualquer reforço do SNS ou dos direitos do trabalho.

Há quem se predisponha unicamente a bater palmas ao SNS a ver se nada muda. Nós que aprendemos com a pandemia sabemos que é preciso que tudo mude para que nada fique na mesma.

Moisés Ferreira
Sobre o/a autor(a)

Moisés Ferreira

Dirigente do Bloco de Esquerda. Psicólogo
Termos relacionados: