É simples condenar os tumultos a que assistimos nos EUA porque não vale tudo. Mais difícil é resistir à tentação de ficar por aí num país onde 40 milhões de pessoas não têm emprego e mais de um milhão de pessoas morreu com coronavírus enquanto Donald Trump perdia o seu tempo com o "cadastrado em saúde" Mike Pence ao comando de um grupo de emergência pró-religioso, bombado em auto-ensaios com cloroquina enquanto incentivava a economia a avançar sem dó nem piedade. Quase 60 anos após Martin Luther King, os EUA estão a resolver hoje nas ruas o que os EUA não conseguiram transformar.
Com a eleição de dois referenciais da infâmia negacionista e segregacionista, EUA e Brasil vivem conflitos armados para abrir feridas profundas
É redutor apontar Trump e Bolsonaro como os responsáveis únicos pela espiral de loucura e caos em que as sociedades norte-americana e brasileira mergulharam. Mas, à escala global, os sectores mais conservadores e extremistas encontraram todos os condimentos nestas lideranças para o reforço da simbologia associada aos mais tenebrosos desígnios de demagogia, racismo, desinformação, agravamento das desigualdades, supressão de direitos e tratados de criminologia ecológica. Com a eleição de dois referenciais da infâmia negacionista e segregacionista, EUA e Brasil vivem conflitos armados para abrir feridas profundas, escavando uma vala comum que só a consciência, luta e inteligência eventual de muitas gerações poderá ultrapassar. Mas será uma vala comum e para todos.
Ninguém pode dizer que não estava avisado. Trump, em três anos, fez terraplanagem do terreno para o que agora se vê nas ruas. Bolsonaro precisou de apenas um ano e meio para esquartejar o Brasil em metades, provendo o confronto de brasileiros de primeira com brasileiros de segunda num desfile de ignomínia, ignorância e desprezo, apoiado por gente que pensa o Brasil como os senhores feudais pensavam a escravatura. Sem olhar a meios. Assistimos a algo que não tardará a transformar-se em ferro e fogo.
Para os amantes da ode pacifista de "I Have a Dream", pede-se que continuem a ouvir para além de duas frases. Relembremos a brutalidade e desproporção de décadas de violência das forças policiais sobre negros e a ostracização e menoridade a que os seus direitos e liberdades sistematicamente foram votadas em razão da cor. São essas condições de injustiça que levam a que muitos pensem não ter outra alternativa senão a de recorrer à rebelião. Porque, como sustentava o "pacifista" King, a "América não quis ouvir". Não quis ouvir, por exemplo, que grande parte da sociedade branca "está mais preocupada com a tranquilidade e o status quo do que com a justiça e a humanidade". Não são os únicos.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” de 5 de junho de 2020
