Está aqui

A "vacinação" do Plano de Vacinação

No actual contexto de saúde pública, é no mínimo estranho que haja quem considere prioritária a vacinação como “mais-valia competitiva”, quer na perspectiva de turismo de vacinação, quer na de vacinação do turismo.

“(…) Se há vacinação, então deve ser considerada prioritária para este setor. A vacinação dos profissionais do sector do turismo assume-se, no atual contexto económico e sanitário, como uma mais-valia competitiva na fase da retoma, face a outros destinos concorrentes, período em que a disputa competitiva vai ser muito acentuada (…)”

Elidérico Viegas, como presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA) - Jornal I, 26/03/2021.

- Uma agência de viagens da Noruega lançou um pacote que inclui uns dias de férias na Rússia e também uma vacina contra a Covid-19. Centenas de turistas alemães já se inscreveram para viajar de avião e regressar de Moscovo com as duas doses da vacina Sputnik V. O preço deste pacote ronda os dois mil euros.Estas viagens estão a ser vendidas para já na Alemanha, mas a agência de viagens já está a fazer uma parceria no Reino Unido – Antena Um (RTP), 26/03/2021.

- “Dez países administraram mais de 75% de todas as vacinas contra a covid-19. Ao mesmo tempo, mais de 130 países não receberam uma única dose” – António Guterres, secretário-geral da ONU - The Guardian e Público, 22/03/2021.

Nada de surpreendente em tudo isto: os critérios de mercado (em que as desigualdades sociais são consideradas instrumentais, como factor de “competitividade”) a preponderarem nas decisões empresariais, políticas e até científicas, mesmo no domínio social que é condição de todos os outros: a Saúde (e é dispensável distinguir se a saúde individual se a saúde pública, porque, como a situação actual bem o evidencia, estes dois níveis são indissociáveis).

Isso é evidente no âmbito mundial (como sublinha o Secretário-Geral da ONU). Mas é-o também na União Europeia pelo quanto, na gestão do processo de aquisição e distribuição das vacinas covid-19, se verificou, para além de uma contratualização em que deveria imperar muito mais visão social sobre a de(o) mercado e financeira por parte da Comissão Europeia. O que, não tendo acontecido, com influência demasiada dos interesse comerciais das empresas farmacêuticas detentoras das patentes (para o que tiveram suporte público na investigação) e fabricantes, teve consequências nefastas na distribuição suficiente e pronta (urgente) de vacinas aos cidadãos europeus.

apesar de todas as expectativas criadas e alimentadas pelas autoridades europeias e nacionais, se mantém a escassez de vacinas e rateamento na vacinação

Daí que, apesar de todas as expectativas criadas e alimentadas pelas autoridades europeias e nacionais, se mantém a escassez de vacinas, com óbvio atraso (já incisivamente criticado pela Organização Mundial de Saúde) e rateamento na vacinação, sendo dispensável especificar os riscos e consequências efectivas para a saúde das pessoas, para os serviços de saúde, para a economia, enfim, para a sociedade.

Não obstante, neste contexto de rateamento na vacinação e, portanto, de necessidade de definição de prioridades que não podem deixar de ter como referência fundamental a saúde e a vida das pessoas, há quem entenda que a vacinação, como “mais valia competitiva”, “dever ser considerada prioritária” para determinado sector de actividade, no caso, o turismo (mas é de admitir que outros venham a ser reclamados).

Portanto, não essencialmente como medida protectora da saúde e da vida dos “profissionais do sector do turismo” na qualidade destes como pessoas, como trabalhadores, mas (só) como uma “mais-valia”, face à “disputa competitiva” da concorrência de outros destinos turísticos.

Os “profissionais do sector do turismo”, os trabalhadores deste sector são assim entendidos como “prioritários”, não em função da sua condição humana e social, até da sua condição profissional propriamente dita, mas em função da “mais-valia” que, se vacinados, acrescentam de “competitividade” ao sector de turismo.

Vale a pena aqui lembrar o que, não apenas por este exemplo, continua a ser muito esquecido e, mesmo, regredido: “O trabalho não é uma mercadoria” (primeiro princípio fundamental da Constituição da Organização Internacional do Trabalho – OIT – introduzido na 26ª sessão da Conferência da OIT, em 10/05/1944, como Declaração de Filadélfia).

Por outro lado, estranho entendimento este das prioridades na vacinação quando das pessoas com mais risco de morte por covid-19 (“a prevenção da mortalidade é o primeiro objectivo prioritário do plano de vacinação”, “a primeira prioridade da Fase I é salvar vidas”, diz e repete publicamente o Coordenador do Plano de Vacinação, Sr. Almirante Gouveia e Melo), apenas pequena parte está vacinada.

Referimo-nos, não sendo preciso invocar nem especialistas nem autoridades de saúde ou até políticas - basta atentar na respectiva estatística diária mais fina – a que tal risco de morte por esta doença ou a esta associado verifica-se, para além de com aquelas pessoas com morbilidades ou deficiência graves, com as pessoas com mais idade. Para com aquelas que com mais de 80 anos, sim, sem dúvida, mas também para com aquelas com mais de 70, 60 ou, até, de 50 anos.

Ora, destas, apenas daquelas com morbilidades ou deficiência graves e das de com mais de 80 anos há já um número tranquilizador vacinado, pelo menos com as primeiras doses das vacinas.

É verdade que se poderá argumentar que essas pessoas com mais idade e consequentemente mais risco letal foram, até agora, num contexto de escassez de vacinas, secundarizadas relativamente a algumas profissões consideradas essenciais e com acrescido risco de contágio, preponderando aqui um critério de “resiliência do Estado”.

Contudo, se é inquestionável que tais profissões sejam consideradas essenciais para “resiliência do Estado” (e mormente, sem dúvida, os profissionais de saúde), é preciso ter em conta que, num domínio como a saúde e a vida, a “essencialidade” de qualquer profissão para a sociedade não é de todo objectiva, absoluta, há outras profissões também essenciais, ainda que relativamente a outros específicos contextos.

Tanto mais quanto se sabe que, relativamente a este risco (também) legalmente profissional (como risco biológico), mau grado a muita divulgação divulgada e o muito controle público (Autoridade para as Condições de Trabalho) realizado, os empregadores, em geral, não garantem nos locais de trabalho as necessárias e suficientes condições materiais e organizacionais da sua prevenção do ponto de vista de segurança saúde do trabalho, tão interdependente esta é (apesar de, até agora, tal muito pouco ter vindo a ser reconhecidoi) com a saúde pública.

Para além disso, se é indiscutível o critério de acrescido risco de contágio nessas profissões priorizadas, em geral, esse risco de contágio (já não tendo em conta a diferente gravidade das eventuais consequências desse contágio, em função da específica condição pessoal, etária e outra, da pessoa potencialmente contagiável).pode não existir, e em regra não existe, em toda a profissão.

Isto significa que, num condicionalismo de escassez de vacinas em que há diminuição da prioridade para as pessoas consideradas em maior risco de mortalidade, quer no planeamento da vacinação, quer, sobretudo, na sua concretização, esta maior prioridade atribuída não pode ser referenciada à profissão em geral – toda a profissão - independentemente de se nas condições do seu efectivo exercício existe, ou não, o acrescido risco.

A não ser assim, é susceptível de se dar a entender que o critério não é o do acrescido risco de uma profissão essencial para a “resiliência do Estado” mas o poder de influência política ou institucional de uma corporação.

Voltando ao início, para concluir, no actual contexto de saúde pública, para cuja solução a vacinação, não só é por agora a única resposta preventiva existente para além do comportamento individual e social e os equipamentos de protecção individual como (ainda) é reduzida a possibilidade de lhe aceder, é no mínimo estranho que haja quem considere prioritária a vacinação como “mais-valia competitiva”, quer na perspectiva de turismo de vacinação, quer na de vacinação do turismo.

Enfim, em geral quanto a tudo o que precede, tranquiliza pressupor que, quer o Governo, quer a Direcção-Geral de Saúde, quer o respectivo Sr. Coordenador, já procederam ou procederão à inerente “vacinação” do Plano de Vacinação.

Nota:

i O trabalho, “ângulo morto da saúde pública” –Público, 02/08/2010 - O trabalho, "ângulo morto" da saúde pública | PÚBLICO (publico.pt)

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
(...)