Uma superpotência mundial contra as perversidades da guerra

porJosé Soeiro

24 de março 2022 - 21:42
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Além do sofrimento e da destruição que tem causado para quem está diretamente envolvido, a invasão da Ucrânia está a provocar muitas outras consequências perversas para lá do teatro de guerra.

Além do sofrimento e da destruição que tem causado para quem está diretamente envolvido, a invasão da Ucrânia está a provocar muitas outras consequências perversas para lá do teatro de guerra. É certo que a comoção gerada pelas imagens das populações em fuga dá também origem a gestos de compaixão, de solidariedade e de acolhimento que são boas lições para o presente e o futuro. Quem diria, por exemplo, ser possível um tão largo consenso sobre o acolhimento de refugiados, nos mesmíssimos países onde tanto ódio e xenofobia foi instigado quando era preciso receber as vítimas da guerra na Síria? Ou no mesmo continente em que se criminalizou imoralmente, como fizeram as autoridades italianas, os ativistas que resgatam a vida de milhares de pessoas que arriscam a sorte, em barcos precários que atravessam o Mediterrâneo, em busca de asilo para si e para os seus filhos na Europa. Quem diria que sanções às oligarquias de Estados opressores poderiam ser afinal objeto de acordo, quando há tantos anos reina a complacência e mesmo a descarada captação desses "investimentos" vindos de territórios violentados de todas as formas?

Será bom que esta cultura anti-imperialista faça o seu caminho, com a condenação generalizada da invasão russa de um território soberano. Não minimizemos, entretanto, a normalização do absurdo ou a desconsideração de direitos humanos e políticos fundamentais que não deveriam, à boleia do clima de exceção que as guerras instalam, ser consentidos.

Uma das consequências intoleráveis é o ambiente de intimidação intelectual ou de repressão política sobre quem se esforça por ter um pensamento sobre o que está a acontecer que vá ao arrepio das narrativas hegemónicas. Nas democracias europeias, procura-se impor a ideia de que a condenação da invasão (que deve ser inequívoca) seria necessariamente sinónimo da reabilitação da ideologia do “choque de civilizações" e dessa espécie de nova divisão do mundo em dois campos: o “modo de vida ocidental” contra a “irracionalidade” do resto do mundo. Esse discurso intelectualmente preguiçoso e politicamente perigoso é uma armadilha que tem de ser rejeitada se queremos verdadeiramente empenhar-nos na paz. Na Rússia, onde Putin vem há muito consolidando uma ditadura cada vez mais ostensiva, o mesmo esquema invertido traduz-se na repressão violenta de qualquer opinião crítica da guerra como “traição nacional”, mesmo quando os cidadãos se limitam a empunhar uma “veemente” folha em branco. Na Ucrânia, entretanto, onze partidos políticos, cuja representação vem do voto do povo ucraniano, foram proibidos pelo presidente, ao abrigo da lei marcial.

Uma segunda consequência é a desvalorização do racismo. Em Portugal, foi noticiado o caso de Domingos Ngulonda e de Mário Biaguê, estudantes portugueses de medicina na Ucrânia, que ficaram cinco dias na fronteira com a Polónia e foram tratados, segundo os próprios, como “animais de carga” com polícias ucranianos com tacos de basebol que repetiam “africanos para o fundo da fila”, onde ouviram ordens para que os negros formassem filas próprias que eram remetidas para o fim. Não se tratou, infelizmente, de uma situação isolada. No final de fevereiro, o presidente do Senegal e o presidente da Comissão da União Africana queixaram-se dos “tratamentos inaceitáveis” e “chocantemente racistas” e o próprio Parlamento Europeu viu-se forçado, no primeiro dia de março, a condenar “o racismo experimentado pelos estudantes africanos e do Médio Oriente que foram impedidos de embarcar em autocarros e comboios na Ucrânia para chegar à fronteira ou impedidos na fronteira sem que pudessem procurar segurança”. Foram posições importantes, mas que não tiveram um eco à altura. Em Portugal, Santana Lopes vangloriava-se, nestes termos, de acolher refugiados: “A receber Dasha, lourinha, de olhos azuis. (...) Absolutamente emocionante”. No Observador, José Crespo de Carvalho, professor catedrático do ISCTE e co-fundador da We Help Ukraine, publicou um artigo repugnante, em que elogiava a “crise como oportunidade", por poderem entrar em Portugal cerca de 30 mil ucranianos que “colocarão a faca nos dentes, isto é, ninguém espere que sejam trabalhadores das nove às cinco e que venham reclamar o que por cá reclamamos”, fazendo a apologia da exploração dos refugiados - prontos para serem sugados pelo oportunismo empresarial - e da instrumentalização da sua presença para rebaixar os direitos de todos, numa corrida para o fundo dos direitos laborais.

Uma terceira consequência é a trivialização de exortações arrepiantes, como a de um conselheiro nacional do PSD e professor da Universidade Católica que veio afirmar que “os nossos filhos têm de estar preparados para um dia, eventualmente, combaterem e morrerem se for preciso, pela UE” ou a apologia da corrida armamentista e da remilitarização da política, como se a paz pudesse ser construída com a escalada da guerra. Ou a hedionda decisão da juíza Catarina Vasco Pires, que isentou o neonazi Mário Machado de cumprir as medidas de coação a que foi sujeito pelos crimes que cometeu - estamos a falar de alguém que, entre outras coisas, esteve envolvido no homicídio racista de Alcindo Monteiro - para se dedicar à “ação humanitária” na Ucrânia, isto é, para se reunir com um grupo de nazis empunhando as armas que não pode legalmente utilizar em Portugal e se desobrigar de responder à justiça, decisão aliás já contestada pelo Ministério Público. A polarização da guerra serve de contexto para banalizar o inaceitável.

Uma quarta consequência - entre muitas outras que poderiam ser identificadas - é a regressão absoluta na agenda da justiça climática, essencial para salvar o planeta, com vários países a ponderar e até a anunciar a retomada da produção de energia fóssil, em função da crise energética agravada pela guerra.

Perante isto, mais do que nunca, precisamos de um movimento contra a guerra que atravesse todo o continente e se constitua como potência mundial pela paz, como aquela que se ergueu, em nome da humanidade, contra a invasão do Iraque em 2003 (uma agressão então apoiada por muitos atuais indefectíveis do Direito internacional…). É na possibilidade desse movimento, creio eu, que repousa a esperança de derrotar a invasão, impôr o fim da guerra e de todas as perversidades que ela traz - a devastação da vida, a violação flagrante do direito internacional, mas também o exacerbar do racismo, da repressão política, da limitação das liberdades e da destruição do planeta.

Artigo publicado em expresso.pt a 22 de março de 2022

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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