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Uma política para a revolta

Precisamos de um New Deal climático, mobilizando recursos e vontades numa escala maior do que aconteceu na II Guerra Mundial.

O acontecimento mais relevante da COP-24 foi a rejeição do mais recente documento do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) pelos Estados Unidos, Rússia, Arábia Saudita e Kuwait. Este é o corolário dos Estados-pária que assumem que a sua preponderância económica é mais importante do que a continuação da civilização humana. O sentimento de choque na imprensa e nos cientistas só se explica por uma enorme ingenuidade e pelo apagar voluntário das memórias dos últimos 30 anos.

Em 1992, antes da Cimeira da Terra, George Bush já o tinha dito com todas as letras: “O estilo de vida americano não é negociável. Ponto.” Desde então os EUA boicotaram todos os acordos climáticos, de Quioto a Paris. São o principal actor do falhanço em termos de redução de emissões de gases com efeito de estufa. À escala global, desde 1992, só a crise financeira (também de origem nos EUA) fez as emissões mundiais caírem, apesar de taxas de carbono e comércio de emissões. Em 2018, novo recorde de emissões. O metano também disparou, mas a sua contabilidade é mais frágil, os EUA o principal emissor, depois da revolução do fracking. Agora, os EUA co-lideram o esforço para bloquear a ciência climática, que diz que acabou o business as usual e que é preciso cortar 50% de todas as emissões até 2030.

Os EUA são o baluarte e o braço armado do capitalismo global. E se o capitalismo global tem dificuldades em fazer dinheiro com as alterações climáticas, os EUA tudo farão para evitar que se fale sequer de alterações climáticas. E, assim, Trump mandou apagar as referências ao clima nos sites governamentais, mandou a NASA parar de recolher dados climáticos, anunciou a saída do Acordo de Paris e, até lá, o seu boicote. A aliança EUA-petroestados, em particular com a Rússia, é uma resposta directa ao fraco Acordo de Paris e a ascensão da extrema-direita negacionista em vários países relevantes dá-nos conta das respostas capitalistas à maior crise alguma vez criada: começam pelo negacionismo, passam pelo boicote e sabotagem e culminarão na assunção de projectos políticos de genocídio (os povos mais vulneráveis às alterações climáticas e os refugiados climáticos já são os primeiros alvos). Para desconversar, falam das emissões da China, como se os produtos manufacturados aí não acabassem no Ocidente.

Trumps e Bolsonaros usam a ignorância como medalhas ao peito. Mas não nos enganemos: eles replicam e ecoam sectores da população que valorizam a ignorância. O medo do desconhecido, após o falhanço do triunfalismo capitalista, a ascensão das guerras, terrorismos e da crise ambiental global empurram as pessoas para a valorização da ignorância: porquê valorizar o conhecimento, quando ele tem tanto de assustador para nos dizer nestes tempos? Também se criou o apelo de recuar 50 anos no tempo, quando a ignorância imperava ainda mais, criando um imaginário idílico e irreal de outros tempos para, com ignorância histórica, idolatrar um passado que nunca existiu. Mas a manutenção das propostas destes líderes produzirá um recuo de centenas de milhares anos, para um clima incapaz de suster materialmente a civilização humana.

Quem leu e promoveu este programa político foi Vladimir Putin - a total dependência da economia russa da produção de petróleo e gás levou-o a assumir que um acordo climático que travasse as emissões de gases com efeito de estufa levaria ao colapso da Rússia, pela segunda vez em menos de 30 anos. Por isso, pôs mãos ao trabalho para apoiar as forças políticas no Ocidente que conseguissem travar qualquer acção climática significativa. O seu enorme sucesso só é surpreendente para quem não olhou para a maneira como a União Europeia lidou com a crise das dívidas soberanas. O legítimo descontentamento popular dos povos é pasto fértil para a proposta de um regresso ao passado e a “certezas” autoritárias num tempo em que a autoridade nada tem para oferecer aos povos. Mais do que coragem ou esperança, o que a liderança política do capitalismo ocidental ofereceu foi cobardia.

As elites “centristas” que geriram a União Europeia e os EUA expandiram o pasto para a ignorância autoritária e a fertilidade para a inacção frente ao caos climático. E, pior, para a acção errada, transferindo o ónus da transição energética para os combustíveis, afectando as populações mais pobres e que dependem do transporte individual, sem alternativas para sair do ghetto dos arredores das cidades turistificadas. A revolta contra Macron é uma revolta contra a cobardia e a injustiça (também climática). São estes os heróis que o capitalismo tem para mostrar ao mundo: Macrons, Trudeaus, Junckers e Barrosos.

O capitalismo empurra para a confrontação, mas isto serve de pouco. Para travar o aumento da temperatura nos 1,5º ou 2ºC, o Acordo de Paris teria de resolver a dependência em combustíveis fósseis das economias e das populações. Teria de acautelar que transições como a da economia russa para um novo paradigma energético não seriam colapsos como a queda da União Soviética. Garantiria justiça no processo de transição, para trabalhadores e populações, para o Sul e o Norte global, para países “desenvolvidos” e sobreexplorados. Garantiria formação e novos empregos para mineiros do carvão e para trabalhadores do fracking nos EUA, para trabalhadores da central a carvão de Sines, a electrificação de todos os países africanos, criaria milhões de empregos para o clima. E evitaria conflitos e guerra, emendando o desconcerto das nações que são as relações internacionais de hoje.

Precisamos de um “New Deal” climático, mobilizando recursos e vontades numa escala maior do que aconteceu na II Guerra Mundial. Para isso, são precisos Estados, mas principalmente são precisas populações e trabalhadores, para, como ocorreu há 70 anos, haver coragem e mandatos políticos para mandar a Ford deixar de produzir carros e passar a produzir tanques (agora autocarros eléctricos), para mandar a General Motors passar a produzir caças (agora turbinas eólicas), para mandar a Chrysler produzir processadores (agora painéis solares). É preciso uma política para a revolta e uma revolta política. No século passado, o perigo era o mundo cair no fascismo; hoje é deixar de sustentar a civilização. O capitalismo e os mercados não têm nada para nos oferecer: o objectivo não é fazer dinheiro, é resgatar a civilização humana, custe o que custar.

Artigo publicado nojornal “Público” a 20 de dezembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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