Uma política de património

porNuno Pinheiro

22 de setembro 2024 - 13:21
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As jornadas europeias de património de 20 a 22 de setembro são uma ocasião para refletir sobre as políticas de património, assunto bastante esquecido ou maltratado em Portugal hoje. Como quase sempre, estas políticas não são neutras, nem se limitam a conservar pedras velhas.

A sociedade portuguesa é hoje atravessada por debates intensos sobre a História, as conceções divergentes sobre a história refletem as próprias divergências da sociedade. São inevitáveis as consequências nas políticas de património, afinal é trata-se dos vestígios materiais da história. Há alguns princípios gerais a ter em conta. O primeiro é que não é possível preservar tudo, qualquer política de património implica escolhas, e essas escolhas não são neutras. O segundo é que não se trata apenas de conservar.

A preocupação com o património histórico é contemporânea do interesse pela história e nasce no contexto dos nacionalismos oitocentistas. Em Portugal e, em especial, em Lisboa, a recuperação do património edificado faz-se quase ao mesmo tempo em que se reconstrói a cidade depois do terramoto. Ligado ao nacionalismo oitocentista as preocupações iniciais com o património vão ser as que revelem importância nacional e se liguem à época da fundação da nacionalidade e à época dourada dos descobrimentos. O que antecede essa formação e o período barroco (absolutista) são relativamente esquecidos. Elementos barrocos são removidos de igrejas medievais. Dá-se, no entanto, alguma importância ao que podem ser os antepassados da nacionalidade, em especial Viriato e os Lusitanos.

Não havia uma grande preocupação com o rigor e tomava-se a liberdade de fazer alguns acrescentos, veja-se a enorme torre que ruiu nos Jerónimos e o acrescento construído ao lado onde hoje estão os Museus de Etnologia e da Marinha. Estas tendências agravaram-se com o Estado Novo que faz reconstruções completas, como a do Castelo de S. Jorge. Não é um exclusivo nacional, já que, por exemplo em França, ao mesmo tempo que se promove o levantamento fotográfico do património, Viollet-le-Duc reconstruia edifícios e até cidades, segundo a sua visão romântica.

Depois do 25 de abril, o poder local autónomo vai descentralizar a preservação do património que ganha uma faceta local. É uma situação mais interessante e rica que permite maior diversidade, porém confrontam-se diferentes níveis de interesse pelo património, assim como políticas e atitudes diferentes.

Uma tendência é a valorização do “mais antigo”, do que possa estar ligado a uma personagem nacional, ou, ainda do património religioso. O património industrial, salvo raras exceções tende a ser desvalorizado. Nem tudo é mau no “mais antigo”, começa a dar-se importância aos vestígios pré-históricos que, quando não relacionáveis com Viriato, eram bastante esquecidos.

Surgem novas escalas e categorias, o Património Mundial e o Património Imaterial, neste último é interessante notar o esforço de toda uma região para valorizar o Cante Alentejano. Claro que aqui se corre o risco do exagero, se tudo for património, este deixa de ter importância.

As recuperações de património são, em princípio, mais fáceis e mais viáveis se, quando se trata de edifícios, estes tiverem utilização. Existe aqui um perigo de mercantilização, muitas vezes promovido pelo estado que inclui edifícios classificados na sua lista de bens para venda. Há recuperações e transformações para pousada bem-sucedidas, mas outras são puras destruições. Algumas das anunciadas para venda com esse fim, só o poderiam ser à custa de enorme destruição.

O património pode sair caro, pode ser um obstáculo ao crescimento imobiliário, pode ser um problema para autarquias que querem celeridade nos seus projetos. Pode, por outro lado ser estruturante para povoações, o que seria Mértola sem a valorização (tornada possível por uma visão da história mais englobante que a do Estado novo) do seu património islâmico?

Foz Coa é um caso exemplar, a construção de uma barragem ameaçava as gravuras rupestres e a população, começando pelos alunos da escola secundária mobilizou-se em sua defesa. Foi uma luta complexa, até do ponto de vista científico, contra os que desvalorizavam as gravuras e queriam a barragem. Com o fim do governo de Cavaco, as gravuras acabaram por vencer os interesses económicos da barragem. A princípio terá havido alguma deceção pois o efeito de dinamização das gravuras não terá sido imediato nesta região do interior, porém, três décadas depois, não só há um efeito direto da presença das gravuras, como acabaram por valorizar as produções agrícolas locais, azeite, vinho …

Hoje podemo-nos queixar do excesso de turismo, mas este serviu para dinamizar e alterar cidades que estavam algo estagnadas. Évora, Cáceres ou Mérida são exemplos.

Não é só como instrumento para o turismo que o património é importante. Também é a própria identidade das comunidades que está em causa e aqui as políticas divergem. É conhecido que noutros países, municípios de esquerda tendem a valorizar o património industrial, enquanto municípios de direita o desvalorizam (e destroem), valorizando o património religioso, ou ligado à nobreza. Destruir o património industrial pode ser uma forma de apagar da memória o passado de indústrias, lutas operárias numa localidade entretanto desindustrializada.

O revivalismo do Estado Novo também se tem estendido ao património, é a forma de tentar manter viva a memória (parte dela, obviamente) do regime. Tendo o Estado Novo utilizado fortemente a história para a sua propaganda e legitimidade. Gerou-se um forte movimento sobre a substituição de elementos de jardinagem degradados que representavam os brasões dos distritos e das “províncias ultramarinas”. Não eram objetos significativos, nem sequer eram originais da “Exposição do Mundo Português” de 1940. Nos anos 60 correspondiam à realidade existente, mas a sua reedição em calçada portuguesa hoje é completamente anacrónica colocando em pé de igualdade distritos de Portugal e países agora independentes, mas representados pelos seus brasões coloniais.

O património deve corresponder a uma visão da história, a uma visão que não se limite às épocas douradas, ao fausto da hierarquia religiosa e da nobreza. Uma política de património deve refletir o passado sem limites, a vida das pessoas as suas dificuldades, a sua diversidade. Os conflitos internos e externos, sendo os primeiros geralmente esquecidos.

Mesmo quando não tem dividendos diretos, e muitas vezes têm, as políticas de património devem ser, a nível nacional e local vistas como investimento, não como uma despesa ou incómodo, é a própria identidade e coesão das comunidades que está em causa.

Nuno Pinheiro
Sobre o/a autor(a)

Nuno Pinheiro

Investigador de CIES/IUL
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