Uma Justiça em manutenção: um Orçamento sem visão

porBárbara Ranito

29 de outubro 2025 - 16:43
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O Orçamento de 2026 não oferece direção. Paga-se a folha salarial, conserta-se o que ameaça ruir e adia-se a discussão sobre o que devia mudar. Falta uma Justiça que previna o conflito antes de o punir, que proteja o espaço público e que promova coesão social.

Apesar de um aumento orçamental significativo, a Justiça portuguesa continua em modo de manutenção. O Orçamento do Estado para 2026 ultrapassa os dois mil milhões de euros — um crescimento de 13,5% face ao ano anterior — e, ainda assim, não há sinais de transformação estrutural. O discurso oficial fala de modernização e proximidade, mas os números e a execução mostram outra realidade: reforçam-se meios, não se reformam políticas.

Mais de metade do orçamento da Justiça vai para despesas com pessoal, refletindo um aumento de 5,1% consequência das negociações recentes com oficiais de justiça, guardas prisionais e outros profissionais do setor. É justo reconhecer que, após anos de desvalorização, a atualização salarial era necessária. Mas os sindicatos já classificaram o reforço como "uma mão cheia de nada": faltam medidas para rejuvenescimento de equipas, progressões efetivas e condições de trabalho condignas. A valorização existe no papel, mas não na prática.

O investimento de 200 milhões de euros no edificado da Justiça — aprovado ainda pelo anterior governo — deveria representar uma viragem. Mas, tal como o plano plurianual que o sustenta, permanece preso à lentidão e à falta de execução. A ministra da Justiça, Rita Júdice, tem sublinhado a importância de consolidar o planeamento e prosseguir as obras já previstas, mas sem comprometer o equilíbrio orçamental. O resultado, porém, é um ritmo moroso, marcado mais pela gestão da herança do que por uma estratégia nova.

O caso do Estabelecimento Prisional de Lisboa é o exemplo perfeito da inércia orçamental: o encerramento está atrasado, e até lá o Estado continuará a pagar 280 mil euros por mês em rendas, o que significa mais de 3,3 milhões de euros por ano de despesa sem retorno. O Governo atual argumenta que o plano herdado do PS "não era realista" — mas o problema, agora, é que a alternativa também não é clara.

Se um único estabelecimento absorve dezenas de milhões, como se explica que a verba global para todas as infraestruturas da Justiça chegue apenas para tapar buracos? As condições degradadas de muitos tribunais e prisões não se resolvem com pequenas obras ou retoques de fachada. Sem execução eficaz, transparência nas prioridades e um calendário público de implementação, o investimento corre o risco de se diluir em promessas. É que das duas uma: ou o Governo não pretende executar o plano de forma consistente, ou este orçamento serve apenas para remendar problemas pontuais.

O plano plurianual de investimentos — herança do governo de António Costa — previa obras, requalificações e novas construções até 2027. Mas continua a faltar o essencial: execução e visão. Projetos como a nova cadeia de Ponta Delgada (com um custo estimado de 50 milhões de euros) e a requalificação de Viseu (20 milhões) consomem sozinhos grande parte do montante global, o que deixa pouco espaço para as dezenas de intervenções que continuam por fazer em tribunais, esquadras e edifícios judiciais degradados. O resultado é um orçamento que parece robusto, mas que, na prática, dificilmente cobre o que o próprio Estado reconhece como prioritário.

E é aqui que o discurso do Governo se revela sobretudo retórico: fala-se de "modernização", "proximidade" e "reformas estruturais", mas o que existe é apenas gestão corrente. As promessas de uma justiça mais célere e acessível não passam de slogans sem tradução em políticas concretas. A retórica substitui a reforma; o marketing substitui a execução.

O que mais falta, contudo, não é dinheiro — é política pública. Falta uma visão integrada sobre o que deve ser a Justiça num país democrático: não apenas julgamentos mais rápidos, mas também prevenção, reinserção, apoio às vítimas, mediação comunitária, justiça restaurativa. Falta perceber que um sistema judicial eficiente é aquele que evita o conflito antes de o punir, e que o investimento na prevenção é, também, investimento em confiança e coesão social.

A retórica da "modernização" continua centrada na digitalização administrativa — uma modernização sem alma, que trata a Justiça como um conjunto de processos e edifícios, e não como um pilar da democracia. Sem uma estratégia que una eficiência, acessibilidade e justiça social, o sistema continuará a reproduzir as suas desigualdades: mais rápido para quem tem recursos, mais distante para quem mais precisa.

O Orçamento de 2026 não oferece direção. Paga-se a folha salarial, conserta-se o que ameaça ruir e adia-se a discussão sobre o que devia mudar. Falta uma Justiça que previna o conflito antes de o punir, que proteja o espaço público e que promova coesão social. Assim, o resultado é a Justiça que temos tido até agora: cara, pesada e sem rumo. Uma Justiça de manutenção, que sobrevive entre promessas e adiamentos, quando o que o país precisava era de um verdadeiro projeto de transformação.

Bárbara Ranito
Sobre o/a autor(a)

Bárbara Ranito

Jurista e ativista do Bloco de Esquerda
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