“Uma história sobre as mulheres que são como se fossem da família”

porBeatriz Realinho

31 de janeiro 2025 - 15:52
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O serviço doméstico não se encontra enquadrado pelo Código do Trabalho, mas sim por uma lei própria de 1992, onde se permitia salário abaixo do salário mínimo, menos dias de férias, ausência de feriados ou folgas, limites de horários maiores, desproteção no despedimento.

A peça de teatro, agora também em livro, de Sara Barros Leitão Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa conta-nos “uma história sobre as mulheres que são como se fossem da família”[i]. É a história das mulheres que são quase como se fossem da família, que são sempre quase: quase mães, quase tias, quase irmãs, quase avós, e - com a falta de direitos para o serviço doméstico remunerado - quase trabalhadoras.

Quando falamos das trabalhadoras do serviço doméstico em Portugal, e da sua luta por melhores condições laborais, devemos olhar para a noite de 19 para 20 de agosto de 1921. É nesta noite que a Associação de Classe de Empregadas Domésticas de Hotéis e Casas Particulares se mobiliza para defender os seus direitos através de uma greve de empregadas em conjunto com outros serviçais. Virgínia de Jesus é a protagonista desta noite. Embora a História não nos fale sobre ela, é a primeira de muitas a chegar-se à frente na defesa dos direitos das trabalhadoras do serviço doméstico.

Tal como nos diz o monólogo, “esta mobilização ficou para a história, apesar de praticamente não aparecer na História”, porque foi a partir deste momento que, pela primeira vez que as trabalhadoras domésticas se mobilizaram em Portugal. Apesar de não terem conseguido alcançar uma grande vitória, elas deram-se conta do papel e do poder que a organização coletiva podia ter nas suas vidas.

Durante o Estado Novo, estas trabalhadoras eram meninas-mulheres que migravam de pequenas aldeias e cidades do interior do país para os grandes centros urbanos, vindas de grandes agregados familiares, para que fossem criadas para todo o serviço. Estas meninas-mulheres iam à procura de um imaginário de futuro, isto é, de uma maior estabilidade financeira para as suas famílias, por serem menos uma boca para alimentar, e pelo pouco dinheiro (quando o recebiam) que enviam para casa. Iam, por isso, à procura de uma vida melhor, uma alternativa à vida no campo.

Estas mulheres em miniatura eram separadas das suas famílias ainda em crianças, sem perceberem a razão pela qual tinham que abandonar a terra, os pais, os irmãos. Por sua vez, os patrões tinham como obrigação educar estas meninas-mulheres, ensinando-lhes os trabalhos domésticos, ou seja, a servir. Aprendiam a lavar, cozinhar, servir à mesa, limpar a casa, passar a ferro, cuidar das crianças, acompanhar os patrões quando estes iam de férias.

As mais novas não eram remuneradas, porque tinham pouca idade, e as tarefas que desempenhavam, segundo o Código Civil de 1867, eram consideradas educação. Tinham apenas direito a alimentação, dormida e algum vestuário.

Viviam na mesma cada dos patrões, o que indica uma maior invisibilidade – eram mulheres e trabalhadoras invisíveis, marcadas pela obediência e o silêncio.

Eis que surge o Sindicato. Formalizado em 1976 o Sindicato do Serviço Doméstico tem origem na organização e na luta por melhores condições de trabalho e de vida de um grupo de mulheres que queriam ser vocais e visíveis, emancipando a sua profissão dos moldes de exploração em que consistia. O principal propósito do Sindicato era o da extinção da profissão.

Para além das reivindicações relativas ao trabalho doméstico, condições e direitos de trabalho, estas mulheres deram-se conta de outras questões em torno do ser-se mulher e do ser-se trabalhadora do serviço doméstico. Era a que não podia “ir às reuniões, o marido não deixa e não tem onde deixar os filhos. O trabalho na casa dos outros acaba tarde, e depois ainda tem o da sua casa.”, ou a que “arranjou nove mulheres para o Sindicato. Nenhum pode assinar, são completamente analfabetas”.

A estrutura sindical acabou por prestar iniciativas de apoio social a muitas mulheres através da criação da Cooperativa Operária de Prestação de Serviços Domésticos – Cooperserdo[ii] – que foi responsável pela criação de creches, lavandarias e refeitórios populares. A Cooperativa permitia arrecadar fundos para a atividade sindical, mas apresentava ainda uma alternativa de trabalho para as trabalhadoras do serviço doméstico. Neste espaço as trabalhadoras tinham o mesmo estatuto que qualquer outro trabalhador assalariado, com acesso a dias de férias e proteção social, ao contrário do que acontecia em casa dos patrões.

Organizavam-se em delegações, e, em coletivo, tinham como propósito alfabetizar, cuidar, reivindicar condições de trabalho para a sua classe.

No seu livro Um Feminismo Decolonial, Françoise Vergès diz-nos que “limpar o mundo é algo que milhões e milhões de mulheres se encarregam, incansavelmente, todos os dias”[iii]. O nosso quotidiano, os territórios que habitamos, as nossas casas, as escolas onde estudamos, as faculdades em que nos formamos, os escritórios em que trabalhamos, são todos espaços limpos por mulheres.

Quando questionamos o que faz uma trabalhadora doméstica percebemos que cumulam dezenas de profissões.

A história que nos é contada no monólogo de Sara Barros Leitão, é a de uma luta que ainda não acabou. A invisibilidade, o trabalho informal, a ausência de proteção social continuam a marcar o trabalho doméstico, nos nossos dias. O serviço doméstico não se encontra enquadrado pelo Código do Trabalho, mas sim por uma lei própria de 1992, onde se permitia salário abaixo do salário mínimo, menos dias de férias, ausência de feriados ou folgas, limites de horários maiores, desproteção no despedimento. A Agenda do Trabalho Digno veio trazer determinadas alterações a esta lei própria, acabando com algumas destas discriminações, contudo o paradigma de uma lei separada para o trabalho doméstico continua.

A luta da noite de 19 para 20 de agosto de 1921, e de todas as lutas que se seguiram, são nos dias de hoje necessárias, “porque por trás de cada fábrica, cada escola, cada escritório ou mina existe o trabalho oculto de milhões de mulheres, que consomem as suas vidas reproduzindo a vida de quem atua nessas fábricas, escolas, escritórios e minas”[iv].
 

Notas:


[i]Leitão, Sara. 2024. Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa. Imprensa da Universidade de Coimbra

[ii]Vieira, Celeste. 2018. Mulheres em Luta: A educação e a dinâmica de auto-organização das empregadas domésticas portuguesas do sindicato do serviço doméstico (1960 - 1986). Edições Afrontamento, Biblioteca das Ciências Sociais

[iii]Vergés, Françoise. 2023. um feminismo decolonial. Orfeu Negro

[iv]Federici, Silvia. 2021. O Patriarcado do Salário. Edições Boitempo

 

Beatriz Realinho

Beatriz Realinho
Sobre o/a autor(a)

Beatriz Realinho

Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais. Ativista política e das causas LGBTQIAP+, ambientais e feministas. Autora do podcast “2 Feministas 1 Patriarcado”
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