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Uma história de Ficção Científica

“Há pleno emprego entre os doutorados”. Quem concordar com esta declaração lunática do ministro Manuel Heitor está apto para se consagrar como guionista de filmes de ficção científica.

Há uma clara estratégia de apresentar números gerais sobre o “combate à precariedade na ciência”. E, nisso, o Governo tem-se esforçado na construção de uma narrativa que se sustenta a ideia de que, nesta legislatura, serão celebrados 5000 contratos de trabalho para investigadores. Dessa corajosa meta, até agora só foram assinados 1500, ou seja, menos de um terço. De todas as vias de contratação disponíveis até ao momento, nenhuma apresenta resultados positivos. Talvez por isso haja tanta necessidade de produzir verdades alternativas. Onde está o pleno emprego? E que tipo de emprego é esse? Este artigo de opinião podia ser, na verdade, um ensaio sobre um filme de ficção científica.

Em 2016, com a publicação do Decreto-Lei 57/2016 e as alterações que se lhe seguiram no parlamento, criou-se a oportunidade de reverter bolsas precárias, ao abrigo do Estatuto de Bolseiro, em contratos de trabalho a termo. A medida, ainda que tímida, trouxe alguma esperança aos investigadores “pós-doc”, alguns deles com mais de quinze anos de experiência profissional sem nunca conhecer direitos laborais. A verdade é que, chegados a 2019, dos mais de 2000 bolseiros abrangidos por esse diploma, até ao momento foram consagrados pouco mais do que 800 contratos. Nesta matéria, o ministro é rigoroso nas contas: parece que as execuções apontam todas para um terço do prometido.

No caso dos investigadores seniores, a situação é agravada com o passar dos anos: profissionais com vinte ou trinta anos de carreira, que já teve bolsa de pós doutoramento, saltou para o “Programa Ciência” e arriscou o “Investigador FCT”. Ficaram de fora do último concurso de Estímulo ao Emprego Científico e já não esperam milagres (houve apenas quatro contratos para investigador coordenador e poucos mais para investigador principal).

O PREVPAP tem sido o regabofe dos reitores sobre os precários, com o Governo a aplaudir, votando “Nota 10!” de cada vez que uma Universidade chumba mais de 90% dos requerimentos de investigadores bolseiros ou docentes convidados. Algo está muito mal quando as políticas públicas de emprego científico descartam quem já está mais perto da idade da reforma do que do início da carreira e ainda não conheceu nenhum contrato sem termo. O discurso da “competitividade” prova-se mais impeditivo do que encorajador e não acredito que alguém tenha, hoje, a coragem de dizer que o país pode prescindir de algum destes cientistas. Esperava-se que o novo concurso anunciado pela FCT viesse tentar responder, ainda que sempre de forma insuficiente, a este problema. Mas não vem: a tutela decidiu criar uma estúpida regra de desempate através da data de nascimento ou da data de submissão da candidatura. Palavras para quê?

Quatro anos representam mais do que o tempo para qualquer trabalhador do setor privado ficar efetivo na sua empresa. Estes investigadores estão, pelo menos, há dez anos em situação de instabilidade laboral. Alguns há mais de vinte anos. Com uma vida em suspenso e contas para pagar. Com a obrigatoriedade de apresentar provas da sua qualidade sempre que se candidatam a qualquer bolsa, a qualquer financiamento europeu ou a qualquer projeto de investigação. A investigação em Portugal tem sido tratada como um verdadeiro offshore laboral. Todas as soluções apresentadas pelo Governo até agora apresentam uma nova narrativa sobre a precariedade. Porém, mantêm o mesmo modus operandi: trocar bolsas precárias por contratos a termo mas sem nunca questionar a atual arquitetura institucional das Instituições de Ensino Superior, de quem depende a integração ou não destes profissionais na respetiva carreira. Se uma Universidade ou Politécnico precisa de uma percentagem de docentes do quadro para abrir um curso, por que razão não é necessário uma percentagem de investigadores do quadro para que possam candidatar-se a financiamento de projetos? Não resolve todos os problemas de carreira nem descarta a urgência de rever o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), mas ajudava a tornar as afirmações do Ministro Manuel Heitor mais próximas da realidade.

“Há pleno emprego entre os doutorados”. Quem concordar com esta declaração lunática do ministro Manuel Heitor está apto para se consagrar como guionista de filmes de ficção científica. Mas, alguém acompanha estes seus devaneios? Se é verdade que nunca é tarde para se ter uma infância feliz, também é certo que esta classe profissional já esperou tempo demais pelo Regresso ao Futuro.

Artigo publicado em dia15.sapo.pt a 15 de fevereiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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