Está aqui

Uma Esquerda de disputa

A conclusão mais errada que podemos tirar da derrota eleitoral da esquerda é a de que a linha política de disputa da governação do PS fracassou. A alternativa é uma esquerda muleta da governação ou uma esquerda acantonada na retórica infértil.

Uma esquerda forte é a que disputa as políticas que governam. Claro que, nessa disputa, a radicalidade da agenda e a contracultura da ação são ativos que contam. Mas uma agenda radical e uma ação contracultural que se esgotam em sê-lo estão condenadas à esterilidade política.

Em 2015, a esquerda teve força popular para disputar as políticas. E isso foi a Geringonça. Ao contrário do que pretendem alguns, a Geringonça não foi uma governação do PS com o apoio parlamentar da esquerda, foi a esquerda a disputar, a partir de uma posição de força, o programa de governação do PS. A reconfiguração dessa relação de forças em 2019 teve duas expressões contraditórias: por um lado, o aprofundamento da disputa das políticas, materializado no desafio do Bloco ao PS para um quadro de atuação programática mais avançado que o minimalista adotado em 2015; por outro, a recusa do PS de qualquer quadro de atuação vinculada, acompanhada de um spin fortíssimo de recaracterização do que fora a legislatura anterior, criando, com essa ilusão de que as “negociações” prosseguiam, pressão sobre a esquerda para a chancela a orçamentos de estagnação.

Quem assimilou esse spin governamental e fez sua a conceção da esquerda como um campo de apoio – crítico ma non troppo – e não de disputa com o PS ficou chocado com a rejeição dos orçamentos de 2021 e de 2022 e traduziu esse choque em voto no PS. A essa penalização de uma esquerda de disputa ajudaram outros dois fatores. O primeiro foi o medo que a pandemia instilou na sociedade portuguesa e que as sondagens insuflaram com a efabulação de um risco de governo de direita. O medo alimenta o defensismo e o defensismo é alérgico a disputas. O segundo fator foi o da contradição entre estrutura e conjuntura. De 2019 para cá, a disputa das políticas pela esquerda assentou na crítica do conservadorismo estrutural da governação do PS (no trabalho, na saúde, na justiça, na educação) – numa lógica de médio e longo prazo, portanto – mas o tempo da pandemia é o da conjuntura, o do curtíssimo prazo.

A conclusão mais errada que podemos tirar da derrota eleitoral da esquerda é a de que a linha política de disputa da governação do PS fracassou. A alternativa é uma esquerda muleta da governação ou uma esquerda acantonada na retórica infértil. A pandemia passará, o defensismo passará, o “curtoprazismo” passará. O que não passará é a obrigatoriedade de diálogos na esquerda que criem suporte para a disputa que é preciso fazer, usando acordos e desacordos.

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
(...)