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Uma direita tão ideológica como sempre mas mais desorientada do que nunca

Com a reposição dos cortes e o défice a caminhar para zero, a direita perdeu o discurso do sacrifício necessário, da austeridade redentora, do governo de salvação nacional. Caída a máscara, resta a ideologia.

O impossível aconteceu. O Orçamento do Estado para 2019 foi aprovado na generalidade com os votos do PS, Bloco, PCP/PEV e PAN. A maioria que a direita dizia ser impossível existir existiu. E fez o que a direita disse que não poderia ser feito: “devolver salários, pensões, impostos e, no fim, as contas baterem todas certo”. Além da especulação sobre qual dos três partidos receberá o voto de Pedro Passos Coelho, há outras conclusões a tirar do último debate orçamental da legislatura.

A primeira é que é possível melhorar as contas públicas sem aplicar cortes e aumentar impostos. À esquerda, esta conclusão facilita o debate que importa fazer com o país a partir do ponto em que discordamos do PS: é possível ir mais longe. As imposições europeias da última década não fizeram nada pelo crescimento nem pelo emprego. O futuro está na robustez do investimento público, dos direitos sociais e laborais, dos salários e pensões, da educação e da saúde.

Para a direita, a aprovação do último Orçamento de recuperação social sem a chegada do Armagedão significa uma derrota. A maior desde que perderam as eleições para uma maioria parlamentar. Porque, se até agora podiam tentar afirmar terem sido vencidos pela aritmética, agora não há dúvidas de que foi pela política. Com a reposição dos cortes e o défice a caminhar para zero, a direita perdeu o discurso do sacrifício necessário, da austeridade redentora, do governo de salvação nacional. Caída a máscara, resta a ideologia. E é por isso que hoje temos uma direita tão ideológica como sempre, mas mais desorientada do que nunca.

Ideológica porque continua a acreditar que a desvalorização salarial, a precariedade e a carga fiscal sobre o trabalho são a melhor estratégia para a competitividade do país. Continuam a achar que vender Portugal a retalho é um desígnio nacional. Continuam a defender um Estado mínimo caritativo para pobres em paralelo com um setor privado robusto para quem pode pagar.

Por isso atacam medidas como a redução generalizada das propinas ou a distribuição gratuita de manuais escolares. Argumentam que é inaceitável tratar de forma igual ricos e pobres, mas não é porque estejam preocupados com a ideia de os pobres pagarem a propina dos ricos. É porque não aceitam um Estado social que, sendo pago por impostos diferenciados por rendimentos, trate todos os cidadãos por igual. Querem que os pobres nunca se esqueçam de que são pobres, desde o momento em que recebem o salário até à declaração de rendimentos que entregam para ter acesso ao serviços públicos como a saúde ou a educação. A direita não quer um Estado social, quer uma caridade estatizada.

A mesma lógica levaria à introdução de propinas no ensino básico e secundário. Impensável? Pense outra vez. Em 2012, Nuno Crato afirmou que “temos uma Constituição que trata o esforço do lado da Educação de uma forma diferente do esforço do lado da Saúde”. Na área da educação, adiantou, “temos alguma margem de liberdade para poder ter um sistema de financiamento mais repartido entre os cidadãos e a parte fiscal direta que é assumida pelo Estado”.

Tão ideológica como sempre, sim, porque era ideológica a coincidência do programa da troika com o da direita. E por isso, quando a primeira acabou, a direita ficou órfã, não de programa mas de desculpas.

O programa da direita é impossível de apresentar a um país que voltou a acreditar na esperança. Por isso oscilam entre a acusação de despesismo e de austeridade, lançam mão de imitações perigosas de discursos populistas e procuram lançar a suspeita sobre uma “fatura” que virá no futuro, mas ninguém sabe como nem porquê. É um discurso de suspeição geral que não diz nada sobre o Orçamento e contribui ainda menos para a credibilidade da democracia.

Artigo publicado no jornal “I” a 1 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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