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Um passo para o centro

Não se pode dizer que tenha ocorrido uma viragem histórica nas últimas eleições de Israel, mas, sim, houve uma mudança significativa.

Foi a noite dos otimistas. Na 3ª-feira, 10h01, imediatamente depois de fechadas as urnas, os três programas de notícias de TV deram os resultados das suas sondagens de boca de urna.

As terríveis previsões dos pessimistas desapareceram no vendaval. Israel enlouquecera.

Ninguém andara mais para a direita. Os fascistas não tomaram o Parlamento. Benjamin Netanyahu não se fortaleceu. Longe disso.

Israel caminhara na direção do centro.

Não se pode dizer que tenha sido uma viragem histórica, como a de Menachem Begin em 1977, depois de duas gerações de reinado do Partido Trabalhista. Mas, sim, foi uma mudança significativa.

E, isso, depois de uma campanha eleitoral sem conteúdo, sem excitação, sem qualquer emoção identificável.

No dia das eleições, que é feriado oficial, eu observava seguidamente pela janela, que abre para uma das ruas principais de Telavive. Não se via nenhum sinal de que alguma coisa especial estivesse a acontecer. Noutras eleições, as ruas enchiam-se de táxis e de carros particulares cobertos de pósteres, levando eleitores para votarem. Desta vez, nem um.

Na seção eleitoral, só estava eu. Mas a praia, sim, estava cheia. As pessoas levaram cães e crianças a brincar na areia sob o brilhante sol de inverno. Viam-se velas sobre o mar azul. Centenas viajaram à Galileia ou ao Neguev. Muitos alugaram um Zimmer (curiosamente, usamos a palavra em alemão que designa pensão com cama e pequeno almoço.

Mas ao final do dia, quase 67% dos israelitas tinham votado – mais gente que na última vez. Até os cidadãos árabes, muitos dos quais não votaram durante o dia, acordaram de repente e acorreram às urnas nas duas últimas horas de votação – depois, os partidos árabes cooperaram em ação massiva para arrancar de lá os eleitores.

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Quando foram divulgadas as sondagens de boca de urna, os líderes de uma meia dúzia de partidos, inclusive Netanyahu, apressaram-se a fazer discursos da vitória. Algumas horas adiante, quase todos, inclusive Netanyahu, estavam com cara de parvos. Os resultados reais mudaram só muito levemente o quadro, mas o suficiente para que alguns conseguissem arrancar alguma vitória das garras da derrota.

Quem mais perdeu nestas eleições foi Benjamin Netanyahu. No último momento antes do início da campanha, ele uniu a sua lista de candidatos à de Avigdor Lieberman. A manobra fê-lo crer que seriam invencíveis. Ninguém duvidava de que Netanyahu venceria as eleições, e com uma vitória esmagadora. Especialistas davam-lhe 45 cadeiras, mais que as 42 que as duas formações tinham no Parlamento que está de saída.

Esses números tê-lo-iam posto numa posição em que poderia escolher a dedo os parceiros (melhor dizendo, os seus lacaios) de coligação de governo.

No fim, conseguiu apenas 31 deputados – perdeu ¼ da força que tinha. Foi uma bofetada. O seu principal slogan de campanha foi “Líder forte, Israel forte”. Não. A força acabou. Talvez continue como primeiro-ministro, mas não será nem a sombra do que foi. Politicamente, Netanyahu está próximo do fim.

O que resta do seu grupo mal conseguirá encher ¼ do próximo Parlamento. Implica que será uma minoria em qualquer coligação que consiga montar (e que exige, no mínimo, 61 parlamentares). Se se subtrai desse número a gente de Lieberman, o Likud propriamente dito tem apenas 20 parlamentares, só um a mais do que o verdadeiro vitorioso nessas eleições.

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O verdadeiro vitorioso é Ya’ir Lapid, que muito alegrou muita gente, especialmente ele próprio (e eu), com os espantosos 19 parlamentares que conseguiu eleger. É hoje a segunda maior força no Parlamento, depois de Likud-Beitenu.

Como conseguiu? Bem, é homem bonito, simpático, jovem, com a linguagem corporal de experiente pivot de televisão, o que realmente foi durante muitos anos. Não há quem não conheça o seu rosto. Como ‘mensagem’ só disse disparates, o que não incomodou ninguém. Embora já esteja a chegar aos 50, era o candidato dos jovens.

A sua vitória é parte de uma mudança geracional. Como Naftali Bennett, à direita, atraiu os jovens já fartos do velho sistema, dos velhos partidos, de slogans velhos e já ocos. Ninguém procurava qualquer nova ideologia. Lapid era a cara mais simpática que havia por ali.

Mas não se deve esquecer que Lapid, no centro, derrotou o seu concorrente direto na disputa pelos votos dos jovens – Bennett, da direita. Enquanto Lapid não propagava qualquer ideologia, Bennett fez tudo que pôde para esconder a dele. Andou pelos bares em Telavive, apresentou-se como homem simples, o bom sujeito que todos os homens (e também as mulheres) teriam de apreciar: secular, liberal.

Durante a campanha, Bennett parecia ser a estrela em ascensão no firmamento político, a grande surpresa desta eleição, o símbolo dos passos fatais de Israel rumo à direita.

De semelhante entre Bennett e Lapid, os dois trabalharam muito para ser o que são hoje. Enquanto os outros partidos confiaram quase exclusivamente na televisão para levar a sua ‘mensagem’, Lapid “mergulhou” no país profundo ao longo de todo o ano passado, construindo um partido, falando às pessoas, atraindo grupos de seguidores fiéis. Bennett fez exatamente a mesma coisa.

No final, na hora de votar, quando até os jovens tiveram de escolher entre os dois, ele ou ela não deixou de ver que Lapid fala por uma Israel democrática e liberal, comprometida com a Solução dos Dois Estados. E Bennett sempre foi o advogado dos colonos judeus extremistas e da Grande Israel, inimigo dos árabes e do Supremo Tribunal.

O veredicto dos jovens foi bem claro: 19 parlamentares para Lapid, só 12 para Bennett.

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A grande decepção estava reservada para Shelly Yachimovich. Ela tinha certeza absoluta de que o seu Partido Trabalhista rejuvenescido seria o segundo maior grupo no Parlamento. Chegou a apresentar-se como possível substituta de Netanyahu.

Ambos, ela e Lapid, beneficiaram-se do imenso protesto social do verão de 2011, que tirou a guerra e a ocupação da agenda pública. Nem Netanyahu se atreveu a atacar o Irão ou a ampliar as colónias exclusivas para judeus. Mas, no final, viu-se que Lapid se beneficiou mais disso tudo que Shelly.

Parece que a proposta de Shelly, de concentrar-se exclusivamente nas exigências de justiça social, foi um erro estratégico. Tivesse ela combinado a sua plataforma de reforma social com a agenda de negociações de paz de Tzipi Livni, talvez conseguisse eleger uma segunda maior fação.

A derrota de Tzipi – ficou só com 6 parlamentares – deu pena. Ela só entrou na corrida eleitoral há dois meses, depois de muito hesitar, hesitação que parece ser sua marca registada. A sua obsessão em falar só de “arranjo político” com os palestinos, sem jamais pronunciar a palavra “paz” (Deus nos livre!) forçou-a a navegar contra a corrente e derrotou-a.

Gente que realmente deseja a paz (como eu) votou no Partido Meretz, que, afinal, teve grande sucesso: duplicou o número de deputados, de 3 para 6. Outro resultado notável destas eleições.

Vê-se também que número considerável de judeus votaram no partido comunista, de maioria árabe, Partido Hadash – que também voltará fortalecido ao Knesset.

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A coisa toda resume-se a dois números: 61 parlamentares que votam com o bloco da direita religiosa; 59 que votam com o bloco de centro-esquerda-árabes. Um voto a mais mudaria tudo. Os cidadãos árabes bem poderiam ter assegurado esse único voto a mais.

Observei que as três empresas de TV enviaram equipes para os comités de todos os partidos judeus que encontraram, até para um que não conseguiu ultrapassar a barreira dos 2% de votos (e graças a Deus! O Partido religioso-fascista Kahanista). Nenhuma empresa de TV enviou equipes ao comité de nenhum dos três partidos árabes.

Por um acordo tácito, todas as empresas de TV trataram os árabes como se não existissem. A esquerda (ou o “centro-esquerda”, como preferem ser chamados) relegaram os partidos árabes à condição de “bloco de bloqueio”, os que podiam bloquear a capacidade de Netanyahu para formar uma coligação. Os árabes, eles mesmos, não foram consultados.

Lapid rapidamente tomou conta do “bloco de bloqueio”. Deu pouca importância à ideia de que poderia estar no mesmo bloco com Hanin Zuabi (ou qualquer partido árabe). Também logo deixou claro que não tem ambições de chegar a ser primeiro-ministro. Não está preparado para tanto, não tendo qualquer experiência política.

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Ainda que esse “bloco de bloqueio” não chegue a formar-se, será muito difícil para Netanyahu formar uma coligação para governar.

Desapareceu qualquer possibilidade de uma coligação de direita ‘pura’. É impossível governar com apenas 61 votos (embora Netanyahu possa tentar formar uma pequena coligação no início, contando com adesões adiante). Netanyahu precisará de Lapid, que se tornará figura central no governo. De facto, Netanyahu já o convocou, uma hora depois de encerrada a votação.

Seja como for, Netanyahu precisará de um ou mais de um dos partidos de centro. O que, para ele, torna o próximo governo muito mais cheio de perigos.

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Que lição se deve extrair desta eleição em Israel?

O bloco da direita religiosa perdeu. Mas a dita “centro-esquerda” não venceu, porque não conseguiu apresentar candidato credível ao posto de primeiro-ministro, nem alternativa credível de partido governante, com projeto firme, amplo, para resolver os problemas básicos de Israel.

Para que se constitua em Israel esse tipo de nova força, é absolutamente vital integrar os cidadãos árabes no processo político, como membros plenos. Mantendo à parte os árabes, a esquerda israelita se autocastra. É indispensável constituir uma nova esquerda judaico-muçulmana, uma comunidade de pensamento, linguagem e interesses políticos – e esse ato criativo tem de começar imediatamente.

A batalha por Israel ainda não está perdida. Foi bloqueado o “movimento à direita” de Israel, que já nada tem de inevitável, como se viu. Nós, israelitas, não somos tão doidos como parecemos.

Hoje, a batalha está empatada. Podemos vencer o próximo round. Só depende de nós.

26/1/2013, Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel

http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery

Tradução Vila Vudu

Adaptado para português de Portugal por Luis Leiria

Sobre o/a autor(a)

Escritor israelita, jornalista, fundador do movimento de defesa da paz Gush Shalom.
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