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Um país a soletrar tempestade

O dia de segunda-feira [passada] não acordou morno para as notícias em Portugal.

Noite e madrugada em sobressalto, um furacão ou tempestade Leslie de género indefinido a provar que queria ficar para a história como bem mais do que uma caixa rotativa para órgãos Hammond num país a contas com uma tempestade que não se via há décadas. Nessa noite de ventos tropicais, caíram ministros e ruíram as paredes secretas do sigiloso Orçamento do Estado. As notícias não primavam pela falta de comparência mas a realidade impunha-se. Mas a realidade não veio com o vento.

O mistério da desaparição apoderou-se das manchetes dos principais jornais nacionais da semana que amanhecia com os despojos da noite em pantanas. Pela leitura das capas dos jornais era evidente que se esqueciam de um país e era oficial: o clima da "twilight zone" chegara às redacções. Choque frontal. A tempestade não fazia qualquer manchete em nenhuma das capas dos jornais nacionais porque - pura e simplesmente - não havia sido sentida na Segunda Circular.

Leslie devastou a Zona Centro do país, provocou prejuízos na ordem dos 80 milhões de euros e teve uma maior disseminação pelo território do que os fatais incêndios de 2017. Ventos de 180 a 190 km/hora provocaram 28 feridos e 61 desalojados e foram mobilizados 8217 operacionais da Protecção Civil que responderam a 2495 ocorrências. Escolas fechadas, 300 mil casas sem electricidade e, volvidos três dias, ainda havia 2000 habitações sem luz. O país que adia para o dia seguinte esta realidade não passa de um conjunto de gente que não sabe viver em day after. É um país de rescaldo, sem actualidade. Não quer saber dos factos nem da agonia, não quer nem sabe atribuir relevância ao que não sente. Não doeu forte o suficiente na pele. As notícias mitigaram-se assim, por serem ali ao lado mas suficientemente longe para serem chutadas a pé que roda para os flancos laterais da página.

Os jornais regionais que, nessa manhã, davam conta que a "Maior tempestade em 176 anos devastou Região de Coimbra" colocando-a "em estado de sítio", fizeram a actualidade de referência. Mas o país já elaborava na piada de que a tempestade havia parido um rato. Nas suas capas, alguns dos jornais nacionais só reencontraram um país devastado 24 horas depois. Esta é a informação que não sai da boca do lobo. É esta enviesada forma de julgar o peso da realidade pela medida do que nos afecta directamente, a razão pela qual o serôdio centralismo do país se alia ao esquecimento e à falta de identidade comum.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 19 de outubro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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