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Um Orçamento para contar os dias

O Orçamento insiste em mobilizar quase ninguém e em oferecer soluções escassas para problemas graúdos.

O estratagema não deixa muitas dúvidas: na especialidade, em lá chegando, o Governo pensa oferecer um aumento extraordinário das pensões para atenuar o desconforto da esquerda com tanta parra e pouca uva. Assim, na melhor das hipóteses, espera ter na votação final um texto em que navegue evitando alguns votos em que os deputados cumprissem os seus mandatos eleitorais, aprovando por exemplo a redução do IVA da eletricidade ou um plano para investimento na habitação. O problema é que, mesmo descontados os eventuais percalços políticos, para os quais o Governo não se quis preparar, o Orçamento insiste em mobilizar quase ninguém e em oferecer soluções escassas para problemas graúdos.

O cansaço que se nota

O primeiro efeito desta apresentação do Orçamento é a acrescida incerteza que o Governo quis alimentar. Pensando que passa esta esquina por força de alguma lei da natureza, os arautos do Governo nem resguardaram uma negociação com o PSD-Madeira, que segue a lei da história, com exuberantes encontros desencontrados. Ao menos nos seus bons velhos tempos, o PS reunia-se com o CDS em suíte de hotel. O jogo atual não é bonito, só que nem era para ser. Mais surpresa cria por isso a escolha do primeiro-ministro de exibir o machado de guerra contra o ministro das Finanças na véspera da aprovação do documento, entretendo-se depois durante a semana a explicar que tudo isto é normal como a vida. Suponho que é a única pessoa que não nota que o Governo se mostrou fragilizado e com soluções atamancadas em modo de despedida do ministro.

O Orçamento, neste balanço, fica com um compromisso, 8400 técnicos para o SNS, mais algumas certezas, umas boas (tributação de alojamento local em áreas sobreutilizadas ou insistência no imposto sobre património imobiliário de luxo), outras péssimas (atualização de níveis do IRS com perda real). Até agora, nada mais. Podia ter avançado os novos escalões do IRS para 2020 e 2021 ao mesmo tempo que revia um par de benefícios exorbitantes (o IRS zero dos pensionistas estrangeiros); podia ter chegado a um acordo sobre o IVA da eletricidade, que agora reconhece na carta a Bruxelas que deve ser reduzido (mas se for reduzido o ministro ameaça com raios e coriscos); podia ter apresentado um plano para habitação ou reforçado o investimento com metas verificáveis. Nada. Fixou-se nos 0,3% para a Função Pública, para dar como definitivo que esses trabalhadores perdem sempre.

Tanta displicência contrasta com a renovação e energia que um novo governo devia demonstrar. À evidência, os ministros parecem só saber fazer o que se habituaram quando recebiam instruções das Finanças, mesmo que agora protestem contra o Terreiro do Paço na esperança de influenciar o senhor que se segue.

Uma floresta de comissões e relatórios

O segundo efeito destes estratagemas é a multiplicação de normas programáticas ou, dito em bom português, de promessas vagas para justificar a recusa de medidas concretas. Em questões relevantes, o Governo usa a velha técnica de apresentar a corajosa constituição de uma comissão, ou mesmo, quando quer ir mais longe, declara que haverá um relatório, a seu tempo, bem entendido. Trabalho por turnos? Comissão e relatório. Cuidadores informais? Venha relatório. Escalões do IRS? Em 2021 é que vai ser, ninguém nos segura, no próximo ano é que não. Vistos gold? Neste caso, o Governo é que vai fazer o relatório. Reforço do investimento para a saúde mental? Prometemos que pensamos nisso, é uma prioridade, portanto nada de decisões agora. Taxas moderadoras? Lá iremos, ainda não se sabe como. Programa de vida independente? Um relatório será. Reforço da oferta de habitação? Paciência, o relatório estava feito, mas terá que ser menos do que o que foi prometido na campanha eleitoral; já era pouco, bem se sabe, mas a vida é como é.

A campanha eleitoral foi feita a prometer a estabilidade da maioria absoluta. Pela razão evidente, o Governo escolheu depois a instabilidade de um orçamento atamancado.

Texto publicado no Expresso a 21 de dezembro.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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