Um Jardim no continente

porMiguel Guedes

21 de janeiro 2015 - 15:53
PARTILHAR

Um homem com quatro décadas de um democrático "quero, posso e mando" não se confinará a um papel secundário numa bancada, mas até pode ter a confiança e o arrojo suficientes para um papel principal numa derrota anunciada.

Não me atrevo, depois dos acontecimentos da quarta-feira 7 de janeiro de 2015 em Paris com o ignóbil ataque à Redacção do "Charlie Hebdo", a fazer qualquer exercício de adivinhação sobre a relevância política de Alberto João Jardim em Portugal continental nos tempos mais próximos, agora que deixa a Madeira pelo próprio pé. Tendo escrito neste espaço na passada terça-feira (a propósito do ataque à liberdade de Imprensa na Turquia e da história de agressividade das religiões sobre os cartoonistas em particular) que "um cartoon vale por mil palavras", assisti chocado e atónito aos acontecimentos trágicos do dia seguinte. O dia em que tantos perceberam que o Mundo afinal já havia mudado há muito e o dia em que resolvi resguardar--me do meu sexto sentido por uns tempos. Como tal, arte da adivinhação, por agora não. Quando se escreve sobre Alberto João Jardim, escreve-se sobre o que será exacto e factual. Não necessariamente sobre o que estará certo, como é evidente.

Alberto João em Portugal continental não resistirá a ser o Jardim do arquipélago, o homem que arrastou democraticamente o seu poder pessoal na Madeira durante 37 anos, a dois meses de ultrapassar o recorde de Salazar na cadeira. Com gestão corrente assegurada por mais um trimestre pelo próprio, até à tomada de posse do novo Executivo, duas certezas pendem sem dúvidas: o recorde será seu e as obras ditas "urgentes" não pararão. É Jardim que o anuncia, sem margem para interpretações ambíguas. O que acontecerá na Madeira no próximo trimestre deve ser olhado pela opinião pública com atenção redobrada, aquela que soçobrou e acordou tardiamente para o desvario orçamental das contas públicas na região e que funda, em grande parte, a razão pela qual Jardim abandona o poder após quatro décadas, motivando o seu rival e novo líder do PSD-Madeira, Miguel Albuquerque, a referir que pretende uma maioria absoluta mas não para "manter a prepotência".

A Assembleia da República que trucidou violentamente durante anos a fio estará de portas abertas para o receber. Jardim, rumando ao continente, fará paredes-meias com Marcelo Rebelo de Sousa e Santana Lopes na candidatura presidencial da Direita, intrometendo-se até ao limite do protagonismo e da desistência. Mas será no Parlamento que vamos encontrar o Alberto João que será Jardim. Confortavelmente instalado no gozo da subvenção vitalícia a que tem direito independentemente do exercício de qualquer cargo político com vencimento (uma originalidade da Madeira de Jardim com a condescendência dos republicanos continentais "cubanos"), fará o contraponto com o líder da bancada Luís Montenegro que já fez questão de declarar publicamente o quão feliz ficaria por poder contar com Jardim "nos quadros da nossa bancada". Como se o líder parlamentar do PSD não soubesse que este homem que lhe chega das ilhas nunca será um quadro de bancada caso não tenha um púlpito. Depois, será só uma questão de tempo até que a animação desponte e o animal político se revele. Para que Jardim seja bem sucedido na bancada do continente, nenhum elemento da bancada poderá ter sucesso.

OPSD deve respeito ao Presidente do Governo Regional da Madeira e, sobretudo, teme-o. Talvez porque, jogando com os resultados eleitorais que só enfraqueceram drasticamente nas Autárquicas de 2013, Jardim tenha usado e abusado durante décadas de um estatuto de impunidade no seu próprio partido, onde tudo também lhe era permitido ou tolerado. Alberto João Jardim é um político experiente e sabe que nunca poderá, no continente, ameaçar uma dúzia bem contada de vezes que se vai embora para depois ficar, apelando a uma vaga de fundo como fez reiteradamente na Madeira. Escolherá o seu momento se sobreviver ao seu próprio desgaste e ao seu instinto de pólvora. Procurará o seu "timing" se ligar um redutor a esse instinto até ao momento em que afine a pontaria perante o alvo.

Um homem com quatro décadas de um democrático "quero, posso e mando" não se confinará a um papel secundário numa bancada, mas até pode ter a confiança e o arrojo suficientes para um papel principal numa derrota anunciada. Independentemente do resultado que se anuncie na era pós-Passos Coelho, a verdadeira natureza do PSD poderá estar em combate entre um Rio e um Jardim. Em caso de derrota, Jardim poderá sempre insistir na argumentação dos "cubanos" do continente e contar que só lhe permitiram ser um herói improvável. Vitimizando-se e fechando o livro.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 13 de janeiro de 2015

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
Termos relacionados: