Um governo para os ricos

porJosé Soeiro

19 de julho 2024 - 22:04
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Não é de estranhar que a direita se constitua como um governo dos ricos. De estranhar seria se houvesse quem, à esquerda de Montenegro, se deixasse requisitar para a validação deste programa.

O Governo apresentou-se no debate do Estado da Nação com a lista das medidas tomadas e dos “pacotões” anunciados. Em cem dias, já se sabe, há muito mais anúncios do que concretizações. Sim, o governo mudou as regras do Complemento Solidário para Idosos, aprovando uma medida que há anos era defendida pela esquerda (o fim da consideração do rendimento dos filhos para cálculo do rendimento dos pais) e fez acordos com alguns sindicatos de professores e polícias. Mas o que marca a governação são três orientações. É o benefício fiscal dado a quem tem mais privilégios, aos maiores grupos económicos e a quem tem mais rendimentos, com a injustiça e a regressividade das propostas de IRC e IRS. É a orientação em direção aos privados para estes fazerem negócio do que deviam ser funções sociais do Estado: na saúde a todo o gás, mas também nas respostas sociais a crianças e idosos, campo em que se pretende externalizar a provisão para o setor lucrativo. E é a política para as migrações, em que se cede à retórica da direita radicalizada, acabando com o único mecanismo efetivo de regularização permanente de quem cá trabalha, a chamada “manifestação de interesse”, promovendo por essa via o trabalho hiper-explorado e clandestino.

A comprovar a desigualdade na distribuição de recursos, bastariam as contas que o Expresso fez na semana passada: os alívios no IRC, que beneficiam poucas empresas e as mais lucrativas, pesam mais ao Orçamento do que todos os aumentos negociados com professores e polícias. Serão 1500 milhões por ano quando toda a redução estiver concretizada. O que as maiores empresas lucram em impostos que deixam de pagar não tem qualquer contrapartida, nem de investimento na sua modernização nem de aumentos salariais. É puro instrumento de acumulação de capital. Ao mesmo tempo, há inúmeros problemas por resolver. O Primeiro-Ministro invocou, no debate do Estado da Nação, um “acordo” com os profissionais de saúde, mas para a semana médicos e farmacêuticos estarão de novo em greve, no início de agosto é a vez dos enfermeiros e o estado da saúde é o calcanhar de Aquiles do Estado Social: há mais pessoas sem médico de família, mais hospitais e centros de saúde sem médicos, as carreiras estão longe de estar reconstruídas e não se vislumbra qualquer vontade de o fazer.


 

No que diz respeito aos jovens, o Governo vive numa verdadeira bolha de classe. Dois em cada três jovens ganham menos de mil euros. Mas o executivo de Montenegro tem como bandeira baixar os impostos aos jovens que ganhem mais de mil euros. As medidas para o IRS Jovem valem zero para quem ganha o salário mínimo. Quem ganha 900 euros por mês não beneficia nos primeiros anos face ao que já estava em vigor. Quem ganha 3000 ou 5000 euros por mês vai ter um desconto de alguns milhares ao final do primeiro ano. Até ver, não há nenhum compromisso concreto para o aumento do salário mínimo (a curta meta dos 100 euros no fim da legislatura é condicionada a fatores que serão avaliados, como a célebre “produtividade”) e não há nenhuma medida para aumentar os salários médios, apenas para desviar pagamentos para prémios que ficam de fora das contribuições para a segurança social. Ou seja, o governo só dá mais rendimento aos jovens que já têm salários melhores. Não tem nenhuma medida para aumentar o salário de quem tem poucos rendimentos.

A proposta do Governo sobre os rendimentos dos jovens é socialmente regressiva (beneficia mais quem tem mais, não chega a quem tem menos) e não estancará a emigração dos jovens - até o FMI o declarou há poucos dias! Os 1000 milhões que se perde de receita para beneficiar quem já tem mais rendimento, é dinheiro que falta, por exemplo, em políticas de habitação pública, provavelmente o maior problema dos jovens.

Neste campo, a descolagem da realidade e o viés de classe do Governo atingiram a caricatura. Num vídeo sobre a habitação no Instagram do Governo, a Ministra Margarida Balseiro Lopes, entusiasmada com as propostas do governo, explica aos seus jovens interlocutores: “Numa casa de 450 mil euros estamos a falar de uma poupança de 15 mil euros!”. O exemplo é extraordinário: com os salários que temos, que jovens, se não herdeiros de boas famílias, conseguem comprar uma casa de 450 mil euros? Para que mundo social governa o governo? Que ideia de “juventude” tem na cabeça? Para quem fala?

As classes sociais existem e este governo não se confunde. Nas opções de fundo, agrava a desigualdade e aprofunda o fosso social. Não é de estranhar que a direita se constitua como um governo dos ricos. De estranhar seria se houvesse quem, à esquerda de Montenegro, se deixasse requisitar para a validação deste programa.

Artigo publicado em expresso.pt a 17 de julho de 2024

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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