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Um Governo de minoria em bicos de pés

Não, este não é um Orçamento de continuidade. Porquê? Porque o Orçamento do Estado para 2020 foi desenhado sem espaço para acolher ou negociar propostas da esquerda e realinhou totalmente pela obsessão do superávite.

“0,2% de superávite”, é isso que o Governo acha que o país quer ouvir. Mário Centeno deixou claro que este é um Orçamento feito à medida do número à direita da vírgula e não das necessidades do país. O economista Ricardo Cabral chamou-lhe uma irracionalidade económica, e com razão. Mas os erros do Governo minoritário do Partido Socialista são também políticos.

O primeiro é achar que o país não nota que se está a descontinuar o caminho de recuperação de rendimentos de uma população que só agora começou a sentir que saiu da crise. Durante quatro anos houve Orçamentos com medidas socialmente eficazes, tanto na extinção dos cortes da troika como em políticas diretas ou indiretas de aumento de salários e pensões. Recordemos exemplos como a tarifa social da energia, manuais escolares gratuitos, diminuição das propinas, aumento do salário mínimo e de pensões, revisão das tabelas do IRS, diminuição do IVA em algumas atividades e redução histórica do preço dos passes sociais.

A continuidade natural desse caminho seria o englobamento de rendimentos para um regime fiscal mais justo, como o Bloco propôs e o PS chegou a incluir no seu programa, embora em termos diferentes. Mas, neste Orçamento, nem sinal dessa proposta ou de qualquer alívio fiscal generalizado sobre o trabalho. É um recuo sem razão aparente, talvez para promover um encontro com o PSD a meio do caminho.

Em vez disso, surgiu uma proposta de eficácia muito duvidosa de desconto fiscal para os mais jovens, como se grande parte deles não estivesse isento por receber pouco acima do salário mínimo; e outra que disfarça de incentivo à demografia a pouca vontade de abrir os cordões à bolsa. As duas juntas não valerão mais do que 50 milhões, pouco menos do que o valor previsto para os aumentos de 0,3% para a administração pública.

Continuidade seria ver já neste Orçamento o investimento de que a escola pública precisa, vislumbres das soluções para os problemas da falta de professores e funcionários ou obras de requalificação e remoção de amianto. Ou ver o reflexo orçamental das promessas eleitorais do PS sobre os programas de apoio à habitação.

Em vez disso, o aumento de 1,5% no orçamento da educação vale pouco menos do que 100 milhões, sem medidas concretas. E o que está previsto para a habitação não é um bom começo para a tal promessa de erradicar as carências habitacionais até 2024.

Há, claro, algumas medidas de continuidade ou que, tendo sido aprovadas durante o final da anterior legislatura, só entram em vigor com o OE 2020. Mas de fora ficam quaisquer garantias sobre a descida do IVA da energia num dos países europeus em que a pobreza energética mais mata. E qualquer vontade política para retirar da legislação laboral as regras da troika ou para melhorar a vida daqueles que trabalham em condições mais duras, como os trabalhadores por turnos.

Não, este não é um Orçamento de continuidade. Porquê? Porque o Orçamento do Estado para 2020 foi desenhado sem espaço para acolher ou negociar propostas da esquerda e realinhou totalmente pela obsessão do superávite. É um hegemonismo típico de uma maioria absoluta que o PS não tem. Esse é o segundo erro político do Governo minoritário de António Costa: achar que pode dispensar as negociações mas contar com os votos.

Há poucas desculpas. Um excedente orçamental de 500 milhões. Seiscentos milhões para o buraco sem fundo do Novo Banco. Duzentos milhões para injetar na banca através de ativos por impostos diferidos (DTA), que convertem benefícios fiscais em injeções diretas caso o banco tenha prejuízo. São 1300 milhões de respostas para a eterna pergunta “e onde é que vão buscar o dinheiro?”.

Há dinheiro, mas não há vontade. O resultado é um Orçamento que fica abaixo das possibilidades e, sobretudo, das necessidades do país. Até ver, este é o resumo do Orçamento de um Governo sem maioria a fingir que tem maioria. Põe-se em bicos de pés e ainda por cima não quer apertos nos calos.

Artigo publicado no jornal “I” a 19 de dezembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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