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Um frio de morrer

Em cada inverno, voltam as notícias sobre as pessoas que, em Portugal, morrem literalmente de frio. Segundo os últimos números do Instituto Nacional Ricardo Jorge, são cerca de 400 as mortes anuais, no nosso país, devidas ao frio.

A partir de hoje, os dias vão ficar mais frios. No Porto, as temperaturas mínimas vão andar entre os 3 e os 4 graus. Em Braga um pouco menos. Em Lisboa um pouco mais, como de costume. Em Bragança serão negativas - e em Castelo Branco também.

Há quem goste do frio e do Inverno. Talvez por apreciar essa forma particular de conforto que é estar numa casa quente, com a lareira ou o aquecedor ligado, sabendo que há frio lá fora. Talvez devido a esse prazer que é ter uma janela por onde imaginar o frio do exterior sem que ele se entranhe em nós e por onde ver a chuva a cair sem que ela nos caia do teto.

Infelizmente, há muita gente para quem isto não é assim. Em cada inverno, voltam as notícias sobre as pessoas que, em Portugal, morrem literalmente de frio. Segundo os últimos números do Instituto Nacional Ricardo Jorge, são cerca de 400 as mortes anuais, no nosso país, devidas ao frio.

Os relatórios oficiais da União Europeia falam de “consumidores energeticamente vulneráveis” – nós sabemos do que se trata. A “pobreza energética”, um conceito cada vez mais utilizado nas análises académicas mas também em textos oficiais, designa precisamente esta realidade: a situação de milhares de famílias que não têm capacidade para aquecer ou arrefecer as suas casas adequadamente, ou para satisfazer outros serviços energéticos a um custo aceitável.

De acordo com um estudo que pode ser consultado aqui, quase um quarto da população portuguesa (22,5%, praticamente três vezes a média europeia) declara não ter capacidade para aquecer devidamente a sua casa. Entre a população em risco de pobreza, são 42,7%. Entre as famílias que se encontram em privação material severa, a percentagem é de 87,3%.

A medição da pobreza energética pode ser feita de muitas formas e combinar indicadores diferentes. O estudo do ISEG, coordenado por Farinha Rodrigues, identifica a dimensão do gap energético mensal médio por adulto: oscila entre os 27,5€ e os 40,7€. É esse o valor mensal de consumo adicional de energia por adulto que seria necessário, nas circunstâncias atuais, para eliminar a pobreza energética. No Norte e no Centro esse gap é mais elevado. Nas famílias monoparentais, entre os idosos isolados e nas famílias com muitas crianças, a pobreza energética é maior – tal como a pobreza económica. Tudo isto acontece no país onde se paga a eletricidade mais cara da Europa e onde persistem rendas ilegítimas atribuídas às empresas da energia.

Combater e erradicar a pobreza energética não seria impossível. Para fazê-lo, haveria que combinar pelo menos dois tipos de medidas.

Por um lado, aumentar a “eficiência energética” e reduzir o desperdício. Em Portugal, uma das razões pelas quais passamos muito mais frio do que em países mais frios do que nós é a má qualidade do isolamento das casas e dos edifícios. Em muitos casos, sem gastar mais energia, mas intervindo seriamente na calafetagem de janelas, no isolamento de coberturas e na instalação de sistemas de aquecimento eficientes, resolver-se-ia uma parte significativa do problema. Isso implica investimento público - particularmente nas casas de quem está mais brutalmente exposto ao frio, que são as pessoas mais pobres – e demora tempo.

Por outro lado, seria preciso diminuir o preço da energia para garantir que ninguém sofre ou morre de frio por não ter dinheiro para pagá-la. Isso pode fazer-se através de uma redução geral do IVA da eletricidade (que o PSD e o CDS aumentaram para 23%, ao mesmo tempo que as dormidas num hotel pagam ainda hoje, escandalosamente, 6%!) ou, em alternativa, de uma redução do IVA por escalões de consumo, com um patamar de consumo essencial a ser garantido a todos os cidadãos e a ser tributado à taxa mínima. A proposta do Governo inscrita no Orçamento é um pouco bizarra e incompreensível, porque nem faz uma coisa nem outra – propõe antes uma diferenciação da taxa de IVA não por escalões de consumo mas por potência contratada – e faz depender essa opção da autorização da Comissão Europeia (e se ela não existir, em que ficamos?)

Em política, devem sempre ser avaliados custos, vantagens e desvantagens, a justiça social de cada escolha, devem pôr-se em cima da mesa alternativas e haver mandatos claros. Num país em que tanta gente passa frio sem necessidade e onde tantos milhões vão injustamente para as rendas do setor energético, não priorizar agora uma resposta à pobreza energética, nas suas várias dimensões, seria tão insensível quanto irresponsável.

Artigo publicado em expresso.pt a 3 de janeiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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