Um ex-ministro confessa-se

porMoisés Ferreira

26 de maio 2022 - 17:53
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Adalberto Campos Fernandes criticou a falta de investimento para a generalização das USF e a inexistência de autonomia nas instituições do SNS. Diz o ex-ministro que só não fez o que agora diz que tem de ser feito porque não tinha condições para isso.

Em duas declarações recentes à imprensa Adalberto Campos Fernandes criticou a falta de investimento para a generalização das USF e a inexistência de autonomia nas instituições do SNS. Como foi ministro da Saúde até há pouco tempo, Adalberto Campos Fernandes teve de lançar mão à costumeira desculpa da conjuntura económico-financeira para justificar nada ter feito nestas matérias. Diz o ex-ministro que só não fez o que agora diz que tem de ser feito porque não tinha condições para isso.

Desculpas à parte, é interessante analisar a confissão.

Primeiro fica-se a saber o que já se intuía: o Governo PS secundarizou o SNS e subordinou-o à dívida, ao défice, à taxa de juro (palavra de ex-Ministro). Segundo, o Governo PS continua hoje, ainda que com outro rosto e outra verve no Ministério da Saúde, a não concretizar as medidas que realmente importam para o SNS e para os utentes. O objetivo é o mesmo: limitar as despesas com saúde e o seu impacto nas finanças.

Vamos às confissões: disse Adalberto Campos Fernandes ao Expresso que “não conseguimos abrir mais unidades [USF] porque precisávamos, e entendíamos como necessidade, de contenção de despesa”. Acrescenta ao DN que “por uma necessidade muito grande de contenção dos efeitos de insegurança na despesa (…) essa autonomia foi sendo diferida”.

Ou seja, O Governo PS não criou mais USF não porque não pudesse, não porque não tivesse profissionais, não porque fosse difícil, mas porque não quis gastar dinheiro com isso. Ou, nas palavras de ex-ministro, porque era preciso contenção de despesa. Da mesma forma, o Governo não avançou para a autonomia das instituições não porque não fosse necessária, não porque não fosse importante, mas porque quis manter o controlo das Finanças sobre a Saúde. Em bom governamentês: para conter os efeitos da insegurança da despesa.

E por isso o Governo manteve quotas administrativas para a constituição e progressão de USF que tiveram apenas um efeito e um objetivo: limitar o desenvolvimento da reforma dos Cuidados de Saúde Primários. Foi com o objetivo de ‘contenção de despesa’ que o Governo continuou a deixar concursos e vagas desertas, foi com o objetivo de poupar à custa da saúde que manteve em vigor um sistema ineficiente e verdadeiramente estúpido em que um hospital tem de pedir ao ministro das Finanças para contratar um assistente operacional. Como o Ministro das Finanças coloca esses pedidos de autorização numa gaveta da sua secretária, os hospitais funcionam com falta de profissionais e há atividades a serem desmarcadas porque as Finanças não querem gastar mais 1000 euros por mês a autorizar a contratação desse profissional. No final gasta-se mais, os utentes têm pior saúde e o SNS sofre na sua qualidade, mas a insegurança da despesa foi controlada.

Claro que isso era antes, até 2018, altura em que a conjuntura era muito complicada e impediu Adalberto Campos Fernandes de fazer aquilo que ele acha que um ministro da Saúde deve fazer… Será que é assim? Claro que não. Aliás, o ex-ministro critica a atual ministra exatamente porque se mantém a toada de nada fazer que possa comprometer as continhas certas para apresentar em Bruxelas.

Os resultados já sabemos quais são: 1,3 milhões de utentes sem médico de família, saúde oral e mental simplesmente inacessível, hospitais sempre no limite de pessoal, concursos desertos e saída de profissionais, ineficiência e engenharia burocrática em vez de autonomia e capacidade de contratação.

Não se trata de uma questão conjuntural, mas sim estrutural. O ex-ministro não fez o que devia ter feito porque os juros estavam muito altos. Não, não o fez porque o Governo PS achou que o SNS não valia mais um ou dois pontos percentuais nas contas públicas. Da mesma forma, a atual ministra não faz o que se exige por impossibilidade macroeconómica. Simplesmente não o faz porque o Governo PS continua a ver no SNS uma despesa e não um ganho para a sociedade. Esse é o problema de fundo que nenhuma tentativa de desculpa consegue apagar ou mitigar.

Claro que para problemas estruturais com consequências tão conhecidas, as soluções também devem ser estruturais. Exigirá reforçar e transformar o SNS, não com o Governo PS, mas apesar do Governo PS. Para essa difícil tarefa teremos do nosso lado os trabalhadores da saúde que todos os dias constroem o direito à saúde e a população que sabe que o SNS é a resposta com que podem sempre contar nos momentos que mais precisam. Vamos a isso.

Moisés Ferreira
Sobre o/a autor(a)

Moisés Ferreira

Dirigente do Bloco de Esquerda. Psicólogo
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