Um (des)governo de muitas faces

porAlexandra Manes

02 de julho 2022 - 21:47
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Enquanto pensava em como escrever estas linhas, não pude deixar de pensar em Janus. Trata-se da divindade que melhor espelha o momento em que vivemos no arquipélago dos Açores. Governados ao sabor de muitas faces, e com a certeza crescente de que nenhuma delas acerta.

Rezam as lendas da mais antiga mitologia que entre o vasto panteão de seres que se consideravam divindades estaria Janus.

Janus era uma mistura de ser quimérico, com faces mais bondosas, facetas misteriosas e faces demoníacas. Simbolizava, enquanto representação criada pela crença conjunta dos povos, o lado multifacetado da Humanidade, capaz do tudo e do nada.

Enquanto pensava em como escrever estas linhas, não pude deixar de pensar em Janus. Trata-se da divindade que melhor espelha o momento em que vivemos no arquipélago dos Açores. Governados ao sabor de muitas faces, e com a certeza crescente de que nenhuma delas acerta.

Vejamos, então, um exemplo gritante e profundamente ofensivo que decorreu, e ainda decorre, pelos lados da ilha Terceira, no mal-amado Porto das Pipas.

Já por mais de uma vez senti-me na obrigação de trazer este assunto a público, pelos motivos que já foram detalhados, rebatidos e novamente explicados. Mas não seja por isso, que volto a relembrar as e os leitores mais distraídos.

No Porto de Pipas, em Angra do Heroísmo, durante os trabalhos de requalificação e melhoramento das infraestruturas portuárias, a equipa de arqueologia responsável pelo acompanhamento da empreitada detetou um conjunto de vestígios correspondentes a um sítio de naufrágio, enquadrado, na opinião de vários especialistas, entre os séculos XVI e XVII.

Esses mesmo especialistas demonstraram, de forma clara, o valor elevado desse mesmo naufrágio, junto das autoridades. E, desde então, aguardam-se as respostas do Governo Regional e as estratégias para a resolução deste caso.

Por três vezes, o Bloco de Esquerda perguntou à Secretária competente, e recebeu, até ao momento, três respostas, diferentes, surrealistas e ineficazes.

Enquanto relia a resposta ao último requerimento, e folheava a legislação em vigor, que nos diz que é crime de destruição patrimonial avançar com aquela obra sem proteger a História dos Açores guardada naquele naufrágio, qual não foi o meu espanto quando me deparei com uma notícia de que a Secretária com a pasta dos Assuntos Culturais se regozijava com o prémio, recebido em Bruxelas, na cerimónia de entrega da Marca de Património Europeu.

É de elogiar e louvar a intenção da Senhora Secretária. A Marca do Património Europeu foi atribuída ao património dos naufrágios e sítios arqueológicos subaquáticos nos Açores. Foi atribuída a uma estratégia de gestão sustentável desse mesmo património.

Segui atentamente a cerimónia e não vislumbrei a presença de Sofia Ribeiro, mas sim a da sua assessora para receber o prémio, no entanto, as palavras, em nota enviada à comunicação social, demonstra que se preocupa com esse património. A falta de resposta ao caso do Porto de Pipas demonstra que só se preocupa com isso quando é para falar de prémios para estratégias que não criou.

E assim, voltamos a Janus.

Os Assuntos Culturais navegam com muitas faces, todas elas infelizes. O naufrágio no Porto de Pipas está, a cada dia que passa, mais próximo da sua destruição. A Senhora Secretária, o seu novo Diretor e afins permanecem contentes com prémios que são da Região e calados face às perguntas que interessam responder de forma objetiva e concreta.

Por isso, e uma vez mais, importa chamar todas e todos os açorianos que gostam da sua história e da sua terra e pedir o devido apoio, numa luta que é de todo o arquipélago. Pela nossa cultura.

Alexandra Manes
Sobre o/a autor(a)

Alexandra Manes

Deputada do Bloco de Esquerda na Assembleia Regional dos Açores. Licenciada em Educação. Ativista pelos Direitos dos Animais. Coordenadora do Bloco da Ilha Terceira
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