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Um contrato verde na gaveta de Centeno

Esses centristas de muitas cores que reconhecem Macron como líder não entendem que quem deixou o povo e o planeta nas mãos dos extremistas foram os mercados que eles próprios protegeram e deixaram à solta.

Um dos temas que mais chamaram a atenção esta semana foi um headline na imprensa que dava conta da probabilidade de extinção da humanidade até 2050. Abrindo o título mais ou menos alarmista (de acordo com a análise de cada um), um estudo elaborado por um think tank australiano explicava o que todos já sabemos: as consequências das alterações climáticas serão muito mais rápidas, fatais e imprevisíveis do que imaginamos.

É prudente estudar e chamar a atenção para os riscos das alterações climáticas, ver além das tragédias dos desastres naturais e apurar responsabilidades também das más decisões dos governos. Olhemos para Trump e os seus minions europeus. São os primeiros a negar a emergência climática e os piores a lidar com as suas consequências; a sua única resposta para a pobreza e as migrações são a repressão e a guerra. O planeta pede ajuda e eles respondem com armas.

A História encarregar-se-á de julgar as más escolhas do presente, mas é preciso que lhe sobre tempo para isso. Melhor seria fazer agora o que é certo, enfrentando o Eixo Trump-Bolsonaro-Salvini/Le Pen/Orbán que vai ganhando espaço no mundo. Nunca foi tão importante ser alternativa à extrema-direita, agora também uma exigência climática.

Tenho defendido, cada vez mais convictamente, que essa alternativa nunca poderá sair do campo dos liberais, mais ou menos encostados aos conservadores e enredados numa espécie de procura espiritual. Esses centristas de muitas cores que reconhecem Macron como líder não entendem que quem deixou o povo e o planeta nas mãos dos extremistas foram os mercados que eles próprios protegeram e deixaram à solta.

Proclamam o amor à Europa para que fique tudo na mesma, as mesmas imposições de desregulamentação laboral, encolhimento do Estado social e criminalização do investimento público. Dizem querer mudar a casa, mas deixam tudo igual: a obsessão do défice zero, as regras do tratado orçamental e as requentadas propostas de privatização dos sistemas de pensões.

É verdade que alguns destes liberais se dizem verdes e ambientalistas e incorporam apontamentos de combate às alterações climáticas. Mas, ao atirarem responsabilidades para condutas individuais, escamoteiam o mal que provocam. O lucro continua acima do planeta e as desigualdades não são só económicas, são também ambientais. Vejamos o exemplo do investimento público e de como a sua diabolização atrasa o combate às alterações climáticas. O setor dos transportes é o exemplo mais recente.

“Portugal vai à frente”, disse o ministro do Ambiente, ontem, no Parlamento, reclamando a liderança no combate às alterações climáticas. Será? Não, a avaliar pelo estado em que se encontram os transportes coletivos no nosso país.

A esquerda orgulha-se de ter contribuído para a redução dos passes, uma medida histórica de promoção do transporte coletivo que prometia tirar 42 mil carros de Lisboa, o que não é coisa pouca. Mas o passe mais barato esbarrou na falta de investimento público.

Supressões de carreiras nos barcos, nos comboios e nos autocarros, má qualidade de serviço, falta de pessoal, falta de segurança, falta de manutenção nas embarcações, composições e viaturas. Fossem bancos e nunca faltaria dinheiro, como prova o Novo Banco.

É mesmo de escolhas que falamos: o contrato de serviço público entre o Estado e a Transtejo/Soflusa continua na mesa de Mário Centeno por assinar, mais ou menos na mesma gaveta onde costumam ir parar todos os pedidos de orçamento para contratações e investimento.

É esta a política de transportes de um país que “vai à frente” no combate às alterações climáticas? Quem não ignora os riscos da emergência climática para a humanidade sabe que, sem transportes públicos, estamos todos feitos. E, nesse campo, Portugal não vai à frente. A esquerda conquistou a redução do preço dos passes de transportes, que não seja Centeno a afundar esta medida.

Artigo publicado no jornal “I” em 6 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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