Tudo é vaidade e carreira?

porMariana Mortágua

29 de setembro 2025 - 11:27
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Resposta aos artigos de João Miguel Tavares e Francisco Mendes da Silva sobre a presença da coordenadora do Bloco de Esquerda na Flotilha Humanitária rumo a Gaza.

Disseste um dia que tudo vale a pena,
Tornar as almas mais pequenas é que não.
José Mário Branco, Correspondências, 1997

Em dias consecutivos, no PÚBLICO, dois colunistas da direita dedicaram as suas páginas à minha presença na Flotilha Humanitária rumo a Gaza. Não é raro, mas aconteceu de novo e são textos que dizem mais sobre os seus autores do que sobre o tema.

O argumento de João Miguel Tavares (J.M.T.) é simples: “a não ser que sejamos presidentes, primeiros-ministros ou generais de países muito poderosos”, devemos “dedicar-nos a pequenas causas”. Desperdiço o meu tempo numa “forma de vaidade” porque não tenho, como Tavares, “a sabedoria para compreender aquilo que não posso mudar”.

Francisco Mendes da Silva (F.M.S.), que trocou a tempo a direção do CDS por colunismo e advocacia, antevê mudança de ramo: na Flotilha, estou a “apostar numa carreira no ativismo internacional (...) nas grandes ONG”. Só foi segredo até agora graças ao “jornalismo cúmplice”, claro. Estou “farta do Bloco” e resolvi “abandonar o posto” – para onde, aliás, fui arrastada, aqui já não pela vaidade, mas por circunstâncias (vá lá uma mulher a qualquer lado pelo seu pé…).

Os textos, complementares, desaguam sobre a esquerda, o seu “azar” (J.M.T.) e a sua “desistência” (F.M.S.), comprovada pela minha presença na Flotilha Humanitária.

De facto, sigo na Flotilha por razões políticas que também são pessoais. É onde me sinto mais útil agora, confrontando o bloqueio de Israel que às bombas soma fome e doença. Ao contrário de Mendes da Silva, assumido “amigo do Estado israelita”, não consigo “fartar-me paulatinamente” (ouvido no Expresso) dos crimes cometidos nos últimos dois anos diante dos nossos olhos, financiados e armados a partir dos Estados Unidos e da União Europeia. Sou uma entre muitos milhares de pessoas que, por todo o mundo, passaram à ação por esta causa (grande demais para a bitola Tavares) – a vida das pessoas em Gaza.

Também sigo na Flotilha como deputada eleita e coordenadora do Bloco: no respeito pelos meus mandatos, luto contra o genocídio em curso. Não o fazer é que seria “prescindir de falar com o povo português”, caro Mendes da Silva, pelo menos com quem assume o “nunca mais” imposto pela memória do fascismo e do Holocausto.

Há muito povo português que sabe o que valeram os seus atos perante o genocídio em Timor Leste, que não esperaram por presidentes e governos. E há uma geração que já aprendeu na escola sobre o que diz a Constituição de Portugal sobre direitos humanos, autodeterminação dos povos, direito internacional. Mendes da Silva e Tavares explicam que é tudo “excesso de ambição” ou mera carta de motivação para ONG. Estão a bordo da “nova hegemonia” (F.M.S.) e navegam a favor do vento sulfuroso deste tempo. Registo a falta que lhes faço.

Artigo publicado em publico.pt a 27 de setembro de 2025

Sobre o/a autor(a)

Mariana Mortágua

Deputada. Coordenadora do Bloco de Esquerda. Economista.
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