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Trumpismo sem Trump

Se a solidariedade virtual com as crianças migrantes lá longe for desacompanhada da solidariedade prática com os adultos migrantes cá dentro, o trumpismo sem Trump terá vencido.

Não nos enganemos: a revolta causada pelas imagens das crianças enjauladas na fronteira entre os Estados Unidos e o México teve a dimensão que teve porque envolvia crianças e envolvia Trump. Se as imagens fossem de adultos e de Obama, a mobilização mundial não teria tido metade da expressão que teve. Ora, a verdade é que a política de separação de crianças migrantes na fronteira com o México foi realmente decidida durante a Administração Obama e foi por ela que a dita política começou a ser aplicada.

O que deve então causar revolta? O sofrimento das crianças? E o sofrimento dos pais? Ser Trump o rosto odioso desta política? E ter sido Obama a iniciá-la fazia-a mais benigna no início?

Não, o que é verdadeiramente revoltante é o ódio aos imigrantes que perpassa esta política, com Trump ou com Obama, contra crianças ou contra adultos. O que é revoltante é esse princípio estúpido de que os imigrantes pobres são um fator de desestabilização, enquanto os imigrantes ricos são “um ativo” que se deve atrair com vistos gold e outras prebendas. Ou seja, é esse princípio estúpido que mostra que, bem vistas as coisas, o ódio não é contra os imigrantes, é mesmo contra os pobres.

Há, pois, muito mais trumpismo por aí espalhado do que muitos querem admitir. E não, esse trumpismo sem Trump não é só o de Salvini na Itália ou o de Orban. Essa é apenas a versão hard do trumpismo sem Trump. A versão corrente é menos espetacular mas não menos eficaz na sua afronta ao primado dos direitos humanos. Essa versão corrente é a que diz ser indiscutível que os fluxos migratórios são um assunto de segurança, querendo com isso dizer que são uma ameaça para os Estados de destino. Não foi isso que disse Trump quando deu sinais de recuo na separação das famílias?

Sim, os fluxos migratórios são um assunto de segurança. Da segurança das pessoas que emigram. Só a afirmação deste princípio, sem tibiezas nem cedências, nos permitirá combater o trumpismo disseminado. E a afirmação desse princípio tem que ter consequências práticas, aqui mesmo entre nós. O combate contra a insegurança dramática a que fica condenado o imigrante “sem papéis” – enquanto o milionário que lava dinheiro tem direito a passadeira vermelha feita visto gold – é o desafio maior à coerência com a afirmação daquele princípio.

Se a solidariedade virtual com as crianças migrantes lá longe for desacompanhada da solidariedade prática com os adultos migrantes cá dentro, o trumpismo sem Trump terá vencido.

Artigo publicado no diário "As Beiras" a 23 de junho de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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