A trumpificação das direitas

porFrancisco Louçã

15 de fevereiro 2017 - 21:16
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Será mesmo certo que ninguém podia prever que viríamos a ter em 2017 um Trump na Casa Branca?

Não, não era fácil prevê-lo mas o certo é que a farsa se instalou no poder. Dificilmente se encontraria alguém mais colado ao reality show e portanto mais marcado pela ligeireza (a graçola de invadir o México), pela arrogância (a crítica à Austrália pelos refugiados), pela grosseria (as mulheres), pelo ódio (os imigrantes, a defesa da tortura), pelo interesse próprio (a defesa dos negócios da filha, as suas empresas a sobreporem-se às relações internacionais), ou pela vulnerabilidade (a apreciação de Putin e o ódio à China). Trump comporta-se como um adolescente mimado com um tweet nuclear nas mãos e com uma ansiedade que deixa prever que reage a cada anzol num segundo.

Mas o verdadeiramente notável é que, se não se podia prever Trump, já não se pode antecipar nada. O efeito da globalização financeira é esse mesmo: tudo o que era sólido se desvanece no ar. A globalização devastou os pilares do funcionamento institucional do capitalismo moderno e, desse modo, abriu as portas a todos os fantasmas trumpistas. Merkel inventou Le Pen, tal como Cameron inventou Farage e Clinton inventou Trump. Criou a crise dos regimes tradicionais (depois da explosão dos partidos em Itália, do Brexit e da crise espanhola, em França talvez só reste um candidato do centro e da direita, Macron, que é um aventureiro fora dos velhos partidos). Criou uma crise dos governos, pois não governam. Alinhou poderes regionais, que temem a democracia como a peste. Incentivou mecanismos punitivos, como as regras do euro, para elevar a lógica TINA (não há alternativa) a um princípio sagrado.

Assim, criou um constitucionalismo paralelo e manipulatório que é a nova ordem das coisas. Ora, esta ordem precisa de recrutar arautos e cultores. Ela deve ser reproduzida intensamente, deve ser banalizada mesmo pelas mais atarantadas figuras políticas, deve convidar os que nela veem uma oportunidade de ascensão, deve criar um novo senso comum de agressividade e de alinhamento – em que tudo é possível. Pacheco Pereira chamou a atenção para este esforço de trumpificação das direitas portuguesas e isso terá consequências profundas. O CDS ficará mais atrevido e, com o PSD, inventarão uma austeridade que tenha como argumento humilhar os de baixo. Nesse apelo às armas, como também notou Pedro Mexia, os nossos neoconservadores são dos primeiros a acorrer ao chamamento, mesmo quando os seus líderes norte-americanos se sentiram obrigados a demarcar-se da farsa trumpista.

Rui Ramos, uma das luzes do neoconservadorismo do Observador, indigna-se por isso contra esta crítica, nela descobrindo um ataque subterrâneo à “direita democrática e liberal, muito temida pelas oligarquias instaladas como eventual agente de reformas”. Como cabe, para Ramos em guerra não se limpam as espingardas e é tempo de resistência: “Os democratas liberais — não só à direita, mas à esquerda – precisam de resistir a este delírio de guerra civil (a “divisão do mundo entre Trump e os seus inimigos”), a esta militarização do pensamento, a esta anulação da complexidade, em que seríamos obrigados a tomar, não as posições que correspondem aos nossos valores, mas os postos de combate de uma fantasia niilista”. Paulo Rangel, que pretende um estatuto mais respeitável, dedica-se antes ao entretenimento de argumentar simultaneamente que o trumpismo não existe e que, como existe, é a esquerda que se parece com ele. Não precisa de ser verdade mas também não se esforça por ser bem apanhado, é antes um jogo floral em que o nevoeiro sobrou como última razão.

Temos portanto uma direita entre o trumpificado (os seus temas são os que servem para o realinhamento eleitoral, veja-se Fillon), com o argumento último de que o alerta anti-trumpista é um ataque à cruzada ilustre da direita liberal (Ramos), e o argumento de que é a esquerda, os outros, quem está trumpificada (Rangel). Não é grande defesa.

E é que não é mesmo precisa nenhuma defesa. A direita, a direita que conta, está confortável com a agressividade trumpista. É disso mesmo que precisava para renascer. Habituemo-nos.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 14 de fevereiro de 2017

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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